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Lindinalva Correia Rodrigues 
É promotora de justiça em Mato Grosso. O texto reproduzido é um trecho extraído do “Discurso de Posse”, opúsculo lançado em 12 de novembro de 2019, por ocasião da posse da autora na Academia Mato-grossense de Letras. 

Faço o registro de que a Academia Mato-grossense de Letras possui 40 patronos, todos homens e que em quase cem anos, ela já foi composta por 165 homens e 15 mulheres, eu sou a 15ª. Desde a Antiguidade Clássica, em Mato Grosso, no Brasil e no mundo, as mulheres sempre tiveram de quebrar paradigmas para assegurar não apenas seu espaço, mas suas vontades, direito ao corpo, a sexualidade e sobretudo a intelectualidade.


Sabemos das dificuldades enfrentadas para o alcance simbólico dessa vitória que dedico a todas as mulheres, letradas ou não, vocês são guerreiras e estamos juntas tomando posse, sintam que eu sou vocês e vocês vestem comigo a pelerine. Todas as mulheres que como eu , o mundo não conseguiu enquadrar, mães de vários filhos com pais diferentes, mulheres de ação que não se conformaram com sua sina, aquelas que bailaram na noite escura da incerteza do dia seguinte, que lutaram por uma liberdade que não cabe nas palavras e trabalham diariamente para reafirmar uma competência absolutamente natural no âmbito masculino.
Ocupar hoje este espaço de fala como uma mulher, celebrando todas as demais, com a experiência de quem foi a primeira jurista a aplicar a Lei Maria da Penha no Brasil, que há mais de treze anos permanece na função de combater as mazelas da violência doméstica é uma conquista histórica feminina.


Segundo o Atlas da Violência 2016, em 2014, treze mulheres foram assassinadas por dia no país, “no ano em que o Brasil comemorava a Copa do Mundo e se exibia como uma nação cordial e receptiva, 4.757 mulheres foram vítimas de morte por agressão”. Ainda que a Lei Maria da Penha já contasse com 8 anos de vigência, a taxa de assassinato de mulheres cresceu 11,6% entre 2004 e 2014. Em 2015, 4.621 mulheres foram assassinadas no Brasil e o Atlas de 2017 registrou que enquanto o número de mulheres não negras teve uma redução de 7,4% entre os anos de 2005 a 2015, o assassinato de mulheres negras aumentou 22% no mesmo período. Já no Atlas de 2018, encontramos a informação de que em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas. O mesmo indicador de 2019, registrou o crescimento do assassinato de mulheres no Brasil em 2017, voltando-se ao patamar de 2014, com treze mulheres assassinadas por dia, com um total anual de 4.936 mulheres vitimadas. Ressaltando que a taxa de assassinato de mulheres não negras cresceu 4,5% entre 2007 e 2017, enquanto a taxa de mulheres negras assassinadas subiu 29,9% na mesma época.


A maioria desses crimes aconteceu dentro das residências das vítimas e o estudo constatou o aumento em 17,1% dos assassinatos ocorridos em casa. Concluindo-se que nos últimos dez anos a taxa de morte no interior dos domicílios, vitimando mulheres com o uso de armas de fogo, cresceu 29,8%, escancarando a situação de extrema vulnerabilidade das mulheres em seus próprios lares, que deveria ser um local de especial acolhimento e aconchego. 


Com esses dados estatísticos que falam por si, marcamos nosso lugar como o 5º país que mais comete feminicídios no mundo, esses crimes de ódio, cuja violência é comprimida atrás dos padrões sociais. 


No Brasil das disparidades, quem são os considerados iguais? Os sujeitos morais e políticos? São os homens brancos e economicamente prósperos de uma sociedade que ainda opera a exclusão das mulheres da esfera pública e seu confinamento no âmbito privado, palco de suas agruras, visibilizadas pela violência doméstica, amparadas por normas  de comportamento sexistas e etnocêntricas, que geram o silenciamento cultural e dificultam a entrada das mulheres na esfera pública e política. 


Estamos todas sujeitas aos estereótipos que nos limitam a determinados modelos com características incapacitantes para a vida pública, política e de ações decisórias relevantes, nos objetificando, retirando-nos a potência e muitas de nossas características humanas. Mulheres, gênero e raça são temas intersexuais proibidos em um Brasil socialmente racista e machista, marcado pela exclusão feminina, com políticas precárias que além de não abrangerem as mulheres, alcançam ainda menos as mulheres negras, comprimidas por múltiplas estruturas de dominação. A mulher bela, recatada e do lar é um símbolo da inaptidão para a vida pública, padrões internalizados e reproduzidos como forma de alienação e despotismo.


Quando elas não se encaixam nos protótipos preordenados viram loucas, bruxas, histéricas, mal amadas e encalhadas, os estereótipos afetam mulheres diferentes de formas diversas, as mulheres negras nunca foram tratadas como frágeis, não são as rainhas do lar, nunca consistiram em rainhas de nada, a não ser no carnaval, de forma coisificada. Somos forçadas a conviver com a cegueira coletiva em relação aos nossos dramas, enquanto seguimos recebendo até 30% menos que os homens para executarmos as mesmas tarefas, todo esse desequilíbrio nos mostra a importância de falarmos de nós mesmas e não sermos faladas por outros, marcando a localização de nosso conhecimento, donde haveremos de gritar toda a desigualdade dessas relações dessemelhantes de domínio.  


Vivo há treze anos assistindo os homens empilharem os corpos sem vida das “suas” mulheres, tentando entender a causa de sujeição delas aos ditames masculinos, que desde sempre tentam calar sua voz através da intolerância e violência, enquanto elas lutam bravamente para corrigir essa rota de desigualdade, erigindo a paridade de gênero como um direito fundamental. Ainda habitamos em um tempo no qual as mulheres pelejam para viver em um mundo sem violência, e continuamos a ser vistas muitas vezes como um corpo, um corpo incompleto, convivendo com elementos misóginos contra nossa intelectualidade.


As reivindicações das mulheres incomodam as estruturas criadas por uma visão patriarcal e machista. A pergunta: o que querem as mulheres? Marcou o século XX, tornando-se o nosso  século, no qual conquistamos o direito a existência, enquanto o século XXI é caracterizado por nossas lutas por mais do que existir, onde buscamos o respeito ao nosso corpo, escolhas e desejos, contrariando a intolerância em relação ao feminino e ao feminismo, certas de que sermos livres é difícil, pois temos que acordar e pensar todos os dias o que queremos e permanecermos capazes de cunhar nossa própria história, perante esse novo horizonte descortinado.


Nessa noite de verbalização de toda tirania e conquistas compartilhadas, venho representar as mulheres que não se adequaram às expectativas impostas pelos papéis sociais geradores de preconceito, violência e morte, que foram capazes de jogar tudo para o alto aos vinte, trinta, quarenta, cinquenta, sessenta anos, em qualquer tempo de suas vidas, para dançarem agarradas a si próprias, na certeza das incertezas.


Não, eu nunca consegui ser invisível e silenciosa, tampouco pura, casta, comportada, previsível, boazinha, não aprendi a cozinhar, não me encaixei aos padrões de beleza, não me enxerguei como um ser incompleto em busca da cara metade, sempre com uma mania de pensar além da conta, vivi do amor exagerado que coloquei em minhas ações, no aprendizado dos tombos e no crescimento que a vida nos impõe para tentarmos melhorar não somente como profissionais, mas sobretudo enquanto seres humanos. 


Por isso as dores e alegrias de todas as mulheres estão vivas em meu coração e tomam posse agora comigo. É interessante, pois quando a mulher se mostra forte e decidida, as pessoas dizem que ela quer ser homem, como se as coisas importantes do universo não nos coubessem. Dedico essa conquista subversiva a todas as mulheres.  Sim, a mulher pode!


Conviver significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os seres que nele habitam, como a mesa se introduz perante os que assentam ao seu redor, como um espaço de ação onde eu apareço aos outros ao mesmo tempo em que eles aparecem a mim e no qual todos cabemos. 


Os seres são humanos não somente por reproduzirem suas condições de índole biológica, mas por multiplicarem cultura em última instância. O mundo está entre os homens e mulheres que se sentam ao redor dessa mesa enquanto seres falantes e participativos, que ao agirem para transformar a si mesmos, também modificam o mundo, impedindo-nos de cairmos uns sobre os outros. Ao redor dessa mesa onde mulheres e homens se enxergam, eles se tornam atores e expectadores de alegrias e agoniais mútuas, permitindo uma convivência equânime, um falar entre si, e principalmente um agir em condições de isonomia. É preciso reivindicar aos humanos a coragem de cuidar da liberdade do mundo, da cultura, da literatura, da história, da poesia, do teatro, das músicas, de toda essa arte deixada e que também deixaremos para os que nos sucederem.


Eis-me aqui confrades e confreiras, me apresento para servir e lutar pelos interesses genuínos da cultura de nosso Estado e da aproximação dela com a comunidade, e consignando derradeiramente a minha precípua causa, encerro com a sabedoria perspicaz de Eduardo Galeano: 


“Na selva do Alto Paraná, as borboletas mais lindas se salvam se exibindo. Abrem suas asas negras, alegradas por pinceladas vermelhas ou amarelas, e de flor em flor borboleteiam sem a menor preocupação. Depois de milhares de anos de experiência, seus inimigos aprenderam que essas borboletas têm veneno. As aranhas, as vespas, as lagartixas, as moscas e os morcegos olham de longe, mantendo prudente distância. No dia 25 de Novembro de 1960, três militantes contra a ditadura do generalíssimo Trujillo foram espancadas e atiradas num abismo na República Dominicana. Eram as irmãs Mirabal (Minerva, Patria e María Teresa). Eram as mais lindas, por isso chamadas de borboletas. Em memória delas e de sua beleza indevorável, cria-se a data de 25 de novembro como o Dia Mundial da não Violência contra a Mulher. Ou seja: contra a violência dos Trujillinhos que exercem a ditadura dentro de cada casa”.


Que nossa fala nunca se cale!


Muito Obrigada. 

Lindinalva Correia Rodrigues
Cadeira 37 – AML

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