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Klaus Henrique Santos

Reside em Sinop-MT e é membro da Academia Sinopense de Ciências e Letras (ASCL), nela ocupando a Cadeira 10, cujo patrono é Jack Kerouac. Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo. Publicou Páginas da Escuridão (2012), Enfim, a estrada (2014), Horror & Realidade: contos (Carlini & Caniato Editorial, 2015), No Compasso da Loucura (Carlini & Caniato Editorial, 2017) e A poesia mora no bar (Carlini & Caniato Editorial, 2018).

A LIXEIRA DOS CONTOS MALDITOS

O velho cinzeiro com o emblema do Campari estampado nas laterais está transbordando de guimbas. Na escrivaninha, o maço amassado de Chesterfield guarda apenas um cigarro, também torto. A embalagem de cigarro é uma aeronave avariada e está em queda, rumando descontroladamente em direção à lixeira repleta de papéis, também amassados. Ao cair ali, o maço desaparece como o avião que Nelson o imagina ser e é sugado pela neve de uma montanha imaginária. Ele é a operação de resgate e sai em busca do passageiro solitário. Algumas baratas fogem pelas frestas da lixeira enquanto revolve os papéis. 


Apontadores de lápis ora são drones, ora são helicópteros auxiliando nas buscas. Não demora até que um deles penetre no emaranhado gelado de papéis de neve descartados e localize a fuselagem do maço de cigarros. Canetas Bic quase sem tinta são os braços mecânicos responsáveis por retirar a vítima dali. Ainda não se sabe se está viva. Com muito cuidado, o cigarro amassado é colocado na UTI aérea, uma caixa de clipes. O caso é grave, exige cuidados do médico humano. O cigarro é acomodado na escrivaninha, ao lado de uma garrafa de vinho, uma imensa bolsa de sangue para garantir a transfusão. Minuciosamente, o humano estanca o derramamento de fumo das laterais rasgadas e endireita a coluna. Finalmente é terminada a operação e Nelson pode, finalmente, saborear aquele derradeiro cigarro. 


Um vinho barato, degustado vagarosamente em temperatura ambiente, contradição com o calor de Mato Grosso. O elo entre a garrafa e a boca é um copo americano, acostumado ao translado constante de cerveja e café, naquele mesmo trajeto. 


A noite era de reflexão. Retirara todos os papéis da lixeira, tentativas vãs de construir contos de ficção. Nelson desamassou o original de “A maldição das profundezas”, um de seus primeiros livros a ser recusado pelos doutores da Academia de Escritores Provincianos. O resultado final não dera prazer a quem não era dado a leituras e em verdade, contos de terror eram por demais trabalhosos de serem avaliados. 


Ao questionar-se sobre o terror, olhou a estante e as inúmeras obras do mestre Stephen King, empoeiradas e abandonadas há décadas, lembrando prédios cobertos por teias de aranha que bem poderiam ser cabos de eletricidade dos personagens fantasmas.


Nelson comparava o hábito da escrita como o de trabalhar em uma olaria. Nesta fábrica de tijolos, porém, os blocos de argila são imensos e pesadíssimos. O trabalhador empapa-se de suor enquanto junta manualmente as porções de barro para levar ao fogo. Desdobra-se para moldá-lo e esculpir o melhor da própria essência naquele amontoado de terra úmida. O fogo fixa as dimensões e solidifica a certeza do eterno.


O grande bloco, finalizado, é retirado e encaminhado à pilha de outros tantos semelhantes, onde, com esfriar de suas imperfeições, apequena-se. O trabalhador goza de uma saciedade momentânea e, logo, ainda sujo, no corpo e na alma, inicia a confecção de mais um bloco.


 Um olhar mais atento talvez diria que a dimensão do bloco, as rugosidades e espessura, representam o ego de seu criador. O resfriar, o diminuir de tamanho seria a decepção, a frustração diante de mais uma obra imperfeita.


Escrever também é saciar a fome em êxtase, empanturrando-se de delícias calóricas. Escrever é ter que vomitar esse alimento que sustentou e deu prazer, e, após o vômito, sentir o vazio da dor de fome e reiniciar o ciclo. Há que se ter cuidado ante o ato de se constatar estar eternamente reiniciando. É um tentador convite para enfiar uma bala na cabeça, apenas por diversão. Apenas pela libertadora diversão.


Jogou as guimbas na lixeira e viu o fogo consumir as montanhas geladas. Desta vez não havia mais sentido em resgatar a morte. Pegou a garrafa para o último beijo. O revólver estava na gaveta. Apagou a luz e contemplou as diminutas brasas do papel se extinguirem por completo. Apenas por pura diversão, disse a si mesmo em pensamento e sorriu para a escuridão. 

© 2019 - Revista Literária Pixé.

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