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Klaus Henrique Santos 
Reside em Sinop-MT e é membro da Academia Sinopense de Ciências e Letras (ASCL), nela ocupando a Cadeira 10, cujo patrono é Jack Kerouac. Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo. Publicou Páginas da Escuridão (2012), Enfim, a estrada (2014), Horror & Realidade: contos (Carlini & Caniato Editorial, 2015), No Compasso da Loucura (Carlini & Caniato Editorial, 2017) e A poesia mora no bar (Carlini & Caniato Editorial, 2018).

A CARONA

Uma mosca estava boiando no copo de cerveja. Ele a observou morrer ali dentro. Não importava que ela estivesse ali. Continuou bebendo, mas tendo cuidado para não engoli-la.
Sempre parava para beber no bar em anexo ao posto Texaco, que ficava próximo à entrada da cidade. Na maioria das vezes ia acompanhado dos amigos, mas não naquela noite. Já estava na terceira garrafa de cerveja e os reflexos dos carros que passavam pela rodovia o deixavam cada vez mais ansioso. 
Não foi a decisão mais fácil que já tomara, mas com certeza seria a melhor de todas. É bem provável que naquele dia é que nascesse verdadeiramente e a mosca via tudo ali de dentro do copo.
O trabalho e a vida medíocre naquela cidade roubaram-lhe um tempo precioso da juventude. Já poderia estar na estrada há muito. Havia pedido demissão recentemente e ainda tinha algum dinheiro, embora não o suficiente. 
Não tirava os olhos de um Monza preto em que um estranho acabara de chegar. Estava sentado próximo a ele e também tomava cerveja. O carro estava todo enlameado e não era possível ler a placa, mas tinha a impressão de avistar um motorista lá dentro, que o observava.
Pediu mais uma cerveja. Tomaria aquela e então daria um jeito de iniciar a viagem, nem que fosse a pé. Por instantes duvidava de si mesmo, que por fim tomara coragem para realizar o grande sonho. Mas agora não voltaria mais atrás, não passaria o resto da vida naquele lugar. Só tinha aquela vida e não a desperdiçaria.
O impulso que faltava ocorreu meses antes, quando levou consigo o livro que um hippie deixara ali no bar do posto. Era um exemplar muito velho de On The Road. O enredo lhe fez refletir sobre a estagnação que o dominava. Por isso teria que agir logo, conhecer o máximo de lugares e pessoas possíveis. Iria seguir sem destino, deixando que a estrada o levasse. O falecido astro de rock estava certo: ‘É melhor queimar de uma vez do que se apagar aos poucos”, falou em voz alta.
O estranho que se levantava naquele momento, olhou para ele e sorriu.
- Precisa de carona amigo? Vejo que está de partida – disse o homem, apontando para uma mochila que estava no chão. 
Não podia acreditar em tão providencial convite. Aquele fora mesmo o dia certo para iniciar a viagem.
- Preciso sim. Vou para o sul.
- Então entre aí. Preciso rodar uns quatrocentos quilômetros ainda esta noite.
Tomou de um gole só a cerveja do copo e desta vez engoliu a mosca.
O estranho quase não conversava. Não dizia o nome e nem para onde estava indo. Falou apenas que estava com pressa e dirigiria a noite toda, sem fazer paradas. Mantinha o olhar fixo na estrada e as luzes verdes do painel deixavam o seu rosto com um aspecto assustador.
O aparelho de som do carro aparentemente estava estragado e aquele mortal silêncio do motorista o deixava apreensivo. Já ouvira falar em muitos psicopatas que esquartejavam suas vítimas após pedirem ou darem-lhes carona. Não se importava em morrer na estrada, mas não queria que fosse daquela forma. Subitamente, como se o motorista pudesse ouvir os seus pensamentos, tirou do bolso um maço de cigarros e ofereceu-lhe. Disse ao estranho que não fumava e ele então explodiu numa gargalhada. Ficou um tanto constrangido com aquela atitude. Teria ele visto o maço de cigarros que tinha no bolso da calça?
Depois de fumar o cigarro, o estranho começou a suar, mesmo com o ar condicionado do carro no máximo. Começou a diminuir a velocidade e acabou parando no acostamento. Tentava falar algo, mas não conseguia. Por fim, caiu morto com a cabeça no volante, acionando a buzina.
Colocou o corpo do estranho no banco do carona e assumiu a direção. Acelerou o carro ao máximo, aproveitando que a estrada estava completamente deserta naquela noite. 
Dirigiu por quase uma hora, até avistar as luzes de um posto de combustíveis. Pôde ver de longe o luminoso da Texaco. Ao se aproximar, qual não foi o seu espanto em reconhecer o lugar. Era o mesmo posto do qual há algumas horas partira juntamente ao estranho. Parou o carro no estacionamento do bar, olhou para o corpo ao seu lado e não viu nada. Não havia corpo, o estranho não estava mais ali. Desceu do carro e então viu o estranho sentado numa das mesas bebendo cerveja. Estava só e com uma mochila ao seu lado.
Viu quando uma mosca caiu no copo de cerveja e o estranho ficou observando-a morrer. Não podia acreditar em seus olhos. Sentou-se próximo ao estranho e pediu uma cerveja. “É melhor queimar de uma vez do que se apagar aos poucos” falou o estranho. Aquilo era demais. Levantou-se e sorrindo para o estranho perguntou-lhe: Precisa de carona amigo? Vejo que está de partida...

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