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Klaus Henrique Santos

Reside em Sinop-MT e é membro da Academia Sinopense de Ciências e Letras (ASCL), nela ocupando a Cadeira 10, cujo patrono é Jack Kerouac. Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo. Publicou Páginas da Escuridão (2012), Enfim, a estrada (2014), Horror & Realidade: contos (Carlini & Caniato Editorial, 2015), No Compasso da Loucura (Carlini & Caniato Editorial, 2017) e A poesia mora no bar (Carlini & Caniato Editorial, 2018).

CADADÁVER DELICIOSO

As primeiras chuvas de setembro vieram raivosas, trazendo ventanias em excesso. Há quase quatro meses não caia chuva no norte de Mato Grosso. Vacilei ao pensar nisso, mas mesmo assim liguei para Bianca e a convidei para um luau a dois, às margens do Rio Teles Pires. A proposta era de uma fagueira mágica e ao sabor de vinho tinto, escrevermos o início do projeto de um livro em conjunto.


Escrever com ela não seria nada fácil. Do lado de lá, Bianca com seus pensamentos complexos sobre a simplicidade das coisas. Do lado de cá, eu, com meus excessos, tomado pela vaidade, buscando a glória de viver para sempre em alguma estante de biblioteca. Sem dúvida uma experiência ímpar com alguém por quem tenho tanto apreço, para não me delongar nos elogios que lhe são devidos. Desafiaríamos nossa criatividade e concepções individuais para construir um único livro, em cujo enredo nos completaríamos em plenitude. Viveríamos para sempre nesse primogênito, fusão impressa das nossas essências.


Demos jeito para escapar de nossos respectivos trabalhos e fui buscá-la em casa, ao final de uma tarde de quarta-feira. Antes havia me encarregado dos suprimentos: duas garrafas de vinho tinto, salame, queijo e azeitonas para petiscar. 


O meu velho Fiat aguentou bem os quase cinquenta quilômetros de estrada de terra que percorremos da cidade até a velha cabana de um amigo, às margens do rio. Boa parte do caminho cortava a mata e era extremamente estreito. Os galhos dos arbustos e das árvores deixaram suas marcas em ambas as laterais do carro e o estrago só não foi maior porque a pintura já estava em ruínas. Quando chegamos, encarreguei-me da fogueira, enquanto Bianca vasculhava a cabana a procura de taças para o vinho. Os copos de plástico descartáveis que eu tinha no carro estragariam o sabor da bebida e a magia de tudo que aquele momento simbolizava. Juntei galhos que estavam ao redor das árvores e os amontoei meticulosamente. Sempre me senti um grande arquiteto do fogo. As chamas do isqueiro tocaram os galhos secos e os envolveram no derradeiro abraço. Logo o fogo estava alto, nos dando calor e iluminação. Estendemos um tapete ali próximo e abrimos a primeira garrafa de vinho. Brindamos com copos de massa de tomate reutilizados e sorrimos. Não precisávamos de taças, a intimidade e a satisfação daquele momento compensava qualquer regra. 


Por quase uma hora conversamos despretensiosamente sobre os últimos acontecimentos, nossas opiniões sobre certas situações e figurões da política. Como era costume, não demorou a haver conflito. Até hoje tenho saudade desses embates, dos desafios que ela me fazia e os questionamentos. Era muito bom crescer com ela e ajudá-la também. 


Quando começamos a discutir, fui preparar uma porção com os petiscos que trouxera, ao paço que Bianca vasculhou o interior do carro à procura do bloco de anotações.  Servi-lhe mais um copo de vinho enquanto ela atacou a comida. Deitamos no tapete e olhando para um cedro centenário rodeado pelo céu estrelado naquele local exuberante onde a vida pulsava em essência, começamos a escrever. As duas primeiras páginas formariam um conto fantástico, mas decidimos recomeçar e atiramos no fogo o que havia sido escrito até então. No bloco, fiz uma frase, dobrei a folha e lhe estendi, pedindo que continuasse sem ver o que eu havia escrito. Ela o fez, dobrou a folha novamente e me devolveu. Meio sem querer iniciamos o nosso primeiro e único cadáver delicioso. Aos poucos, os nossos pensamentos ganharam uniformidade e se aproximaram. A cada frase estavam mais próximos. Eu olhava para ela quando escrevia, reparava no contorno do seu corpo refletindo as chamas da fogueira. Tive que me controlar. Abri a segunda garrafa de vinho enquanto ela desenrolava a página para lermos o maravilhoso resultado, só nosso. Pela primeira vez em muito tempo senti a conexão espiritual com outro ser e tive certeza da grandiosidade do ato de compartilhar. 


Adormecemos ali no tapete e fomos despertados por pingos de chuva durante a madrugada. A fogueira já havia se extinguido há algum tempo e não havíamos percebido. Apressadamente levamos nossas coisas para o carro e iniciamos o caminho de volta. A chuva aumentou bastante e alagou partes da estradinha. Em um desses locais o Fiat atolou e os buracos de ferrugem na lataria recepcionaram a entrada de água, que cobriu nossos pés descalços. Gargalhamos risadas extremamente honestas com aquele imprevisto. Bianca assumiu a direção e eu desci para empurrar. Desequilibrei-me quando o carro ganhou impulso e por muito pouco não mergulhei na poça. Fui para o banco do carona e segui como passageiro o restante do percurso até em casa.


Faz tempo que não vejo Bianca. Até hoje guardo com carinho o nosso escrito. Arranquei as folhas do bloco de anotações e as colei em um caderno onde anoto pensamentos. O tempo nunca existirá para o que vivemos, escrevemos e nos demos a chance de compartilhar.

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