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Juliano Moreno Kersul de Carvalho
Tem graduação em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso, é professor da UNEMAT, mestre em História pela UFMT, produtor cultural do Projeto Palavra Aberta, editor da revista de poesia “Fagulha”. Poeta e prosador, lançou o livro de contos “O Açogueiro”.

OS MUITOS NOMES DE DEDOS DE TERRA

Mãe é como a conheço e, desde sempre, é como a chamo. Sou uma de suas obras. Sua matéria me constituiu. Artesã coautora desse meu DNA. Fui forjado em sua água. Tenho seus quadros na minha casa. Juro que por vezes mexem os olhos acompanhando meus gestos cotidianos. Quando viro de costas, sussurram uma brisa que confundo com as brisas que fazem farfalhar a enorme mangueira do quintal.


Tenho certeza que um dos seus desenhos foi feito pra mim. Em tons beges namorando o marrom e o amarelo. Vemos um homem sereno acariciando uma fera com dentes expostos germinada ao seu corpo. A fera mostra os dentes e ele a acaricia numa eterna doma e exercício de paciência. E assim é a arte: viva, capaz de nos morder. Pensamos interpretá-la, mas é ela quem nos lê e adivinha. De 1989 para cá deram a ela muitos nomes. 


O indigenista e pintor Maurílio Barcelos a chamava de Dedos de terra. Quem viveu a década de 1990 em Cuiabá deve se lembrar de suas performances pela cidade. Sentada no chão, apoiada nos joelhos, ou com as pernas cruzadas, em espaços públicos fazia de 4 a 5 desenhos de 1metro por 1.20 em menos de uma hora, com pigmentos naturais produzidos por ela mesma. Juntava uma pequena multidão pra tentar adivinhar as formas, mas era impossível não se surpreender.


Como Dedos de terra ela lança no infinito cru do papel branco poeiras vindas da Chapada, argilas coloridas filtradas em tons de amarelo, vermelho, verde, marrom. Cores terrosas juntando tecendo figuras como emblemas de civilizações desaparecidas: uma série de animais que vão induzindo aos olhos a forma de pessoas, ou pessoas que dentro do movimento de seus gestos guardam animais. 


Dedos de terra oferece a este mundo o testemunho de criaturas que não existem mais, sacerdotisa desse perfeito passado em que homem e natureza eram um só. Maurílio deu a ela ares de Saint Exupéry e a viu num planetinha, girando luas e sóis de outras eras. Planeta- vagina, sustentado no casco de uma tartaruga cosmológica. Planeta em que fazer nascer é um ato político e comunitário.


Na Bahia o desenhista e pintor Carybé disse que as bruxas existem e que ela era a prova viva de que andam disfarçadas pelo globo terrestre querendo nos curar e fazer evoluir. Nos apontar caminhos de pajelança que no lusco fusco nos livrem desse abscesso existencial aberto em nossa natureza pela sociedade industrial.


Também a reconhecem como uma espécie de alquimista pela conta da sua capacidade de experimentação e pesquisa com as tintas a partir de pigmentos vegetais e minerais, pelo seu trabalho de ressignificação daquilo que alguns consideram como lixo. Em seu laboratório se apropria de bonecas velhas, latas de sardinha, garrafas, esqueletos de guarda-chuva, revistas velhas, embalagens de cigarro, cascas de pistache, roldanas de plástico, olhos de vidro e muitos outros eteceteras.


Ela dá ser a esta variedade de entes mudando suas finalidades, operando radicalidades em suas naturezas utilitárias até que irisam existência e ela os admira em silêncio com anteparos celestes. Os expõe para expor em nós a ferida que eles brilham e assim de alquimista ela vai se mimetizando em artista contemporânea, camaleão lagarteando invisíveis, devorando opacidades. 
Serafim Bertoloto nos explica que:

Se intitulando como arqueóloga urbana a artista leva mão a tudo que lhe atrai o olhar, recolhe para o ateliê os mais diversificados objetos encontrados nas suas incursões pela redondeza onde mora, nos trajetos corriqueiros, nas visitas em lojas de materiais de construção e de demolição. Tintas vencidas, móveis velhos, pedaços de madeira, concreto, plástico, metal, estantes expositoras de lojas, enfim, objetos descartáveis jogados fora no lixo, que se transformam em projetos artísticos conceituais, ou simplesmente em objetos escultoricos retorcidos, queimados, amalgamados, que nos causam certo estranhamento, um frison, um incomodo, um deslocamento da percepção primeira, uma angustia ou risadas pelo humor mórbido ou uma alegria causada pelo inusitado, pelo novo.¹

Em 2016, Aline Figueiredo², numa entrevista, pra falar do nosso contexto histórico contemporâneo exibiu pras câmeras um ser de lata de sardinhas com três rostos esculpidos em papel, exprimidos, presos ao vazio da lata. A crítica de arte disse que aquele ser éramos nós. 


Que a linguagem daquele ser enferrujado na lata cheio de faces distorcidas e espremidas éramos nós. Aline revelou um segredo encoberto pela multidão de seres que Vitória desenhou, esculpiu, forjou com maçarico. O espanto, thaumazein em grego, que sua obra produz é adubo do pensamento. Para Heidegger o espanto é:

(...) enquanto pathos, a arkhe da filosofia. Devemos compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arkhe. Designa aquilo de onde algo surge. Mas este “de onde” não é deixado para trás no surgir; antes, a arkhe torna-se aquilo que é expresso pelo verbo arkhein, o que impera. O pathos do espanto não está simplesmente no começo da filosofia, como, por exemplo, o lavar das mãos precede a operação do cirurgião. O espanto carrega a filosofia e impera em seu interior.³

Minha mãe é uma pensadora do presente que com sua cosmologia nos narra. Em suas instalações nos captura com perguntas que o olhar não resiste de ver e rever. Quantos horizontes um nascer abre? Porque mutilam a alma das mulheres? Porque a cidadela tão faminta vai devorando todas as aldeias e queimando em seu motor a carne exposta dos Xamãs, carne de cascas de árvores tão antigas? Porque nos deixamos encarcerar em latas de sardinha? Quando as aranhas feitas do esqueleto de guarda chuvas abandonados virão devorar os neurônios que restam? Porque nos apressamos tanto nessa engenharia de autodestruição, arquitetura do derretimento que engendra uma fluidez sem volta em que  nos desolamos em coisas abandonadas as engrenagens da matemática dos mercados? José Castello aponta que:

A arte de Vitória Basaia reproduz o assombro humano. É arte do desassossego, mas também arte da aceitação. Arte que não renega, ou camufla o real, mas que faz dele o próprio mistério. É sobre a vida, sempre, que Vitória se debruça, sem preconceitos e sem certezas, guiada unicamente pelo espanto.4

Não sei a idade de minha mãe, é um mistério familiar. Talvez ela tenha todas as idades. Faz trinta anos, em 1989, Vitória expunha suas primeiras obras numa exposição que recebeu o nome de “Basaia se atreve”. Desde então ela vem com audácia mexendo com nossa sensibilidade e pensamento. Propondo-nos vivencias poéticas sobre nossa finitude. Puxando-nos para o agora onde temos que decidir o destino da nossa espécie.

¹ BERTOLLOTO, Serafim. Universo inquieto. Disponível em: https://vitoriabasaia.blogspot.com/2011/03/universo-inquieto.html Acessado em:10/10/2019.
²  FIGUEIREDO, Aline. O Livre entrevista Aline Figueiredo - BLOCO 01. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=181&v=-ZPVQ-1PXYI Acessado em: 10/10/2019.
³ HEIDEGGER, Martin. Os Pensadores - Heidegger. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 37-38.
4 CASTELLO, José. Vitória: para suportar o enigma. Disponível em: https://vitoriabasaia.blogspot.com/2011/03/arte-de-vitoria-basaia.html Acessado em: 10/10/2019.

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