James Jorge Barbosa Flores
Jaminho é natural de Guia Lopes da Laguna MS, onde nasceu em 08 de janeiro de 1965, capricorniano com ascendente em aquário; escritor, professor e jornalista, pesquisador da história e cultura do Mato Grosso do Sul que transforma em relatos ficcionais, versando sobre os elementos culturais identitários e simbólicos do MS. Já publicou dois livros pela Editora Telha, outro pela Chiado Books. É membro da UBE-MS.
A MULHER QUE ESCONDEU O FOGO
Num tempo sem tamanho e sem fim, os kadiwéus viviam vagando pelo Chaco Boreal atrás dos rebanhos de cervos e tocaiando borevis. Manteavam as carnes com facas de osso e pedra, punham-nas para desidratar ao sol em longos roletes, ditos cecinas. Foi nessa tribo – quando estavam acampados perto da montanha Nogená – que nasceu a linda Kalina Netaika, na verdade bisavó da bisavó da índia Lourença, entrevistada e amante do antropólogo Olem Ruiz. Mas vamos aos fatos... (senão ficaremos apenas arrodeando o umbigo do ego dele).
Naqueles idos, os deuses ainda desciam da Lua para a Terra, e Goenohodi era ainda uma lembrança amarga entre o povo guaikuru que se lamentava e pedia mais favores ao deus Jaguaretê, o jaguar que de tempos em tempos descia da Lua para assuntar e fiscalizar o povo filho do Carancho. Via o que comiam, como caçavam, pescavam – se dançavam e celebravam os deuses de forma correta. Se seguiam e respeitavam aos Nijienigis, sacerdotes sagrados e elo entre o povo e os deuses, espíritos...
O Jaguaretê sentia que os kadiwéus não dominavam o segredo do fogo, porém algo lhe dizia que ainda não era a hora de revelar tal epifania e, sendo assim, sempre que por aqui descia, deixava o fogo lá no alto, bem guardado na Lua.
Foi então que numa dessas andanças aqui na Terra, veio o deus Jaguaretê se encantar com os encantos da dionisíaca Kalina Netaika. Deveras formosa, silfídica, de pele cor de âmbar achocolatado, cabelos negros, finíssimos, sempre odorando a malva ou resina de casca de bálsamo; olhos de corça assustadiça, mas de piscar sonolento e desprotegido... Foi demais até para um deus a visão daquela simples mortal. As descidas do divino se tornaram-se mais frequentes, a fiscalização menor, os interesses por outras tribos e localidades quase nulos...
Então, o sabido do Nijenigi dos kadiwéus tudo percebeu e orientou Netaika para conquistar os favores do deus. Esta se pôs mais bela e formosa: untou a pele acobreada com óleo de caroço de pequi, fez sugestivos e ingênuos rabiscos nos braços e rosto com nibadena, deu mais brilho aos cabelos com óleo de namacolli. E seguiu à risca os conselhos do feiticeiro Xavé, de não ceder senão na casa dos deuses, lá em cima, na Lua. Tantos foram os passeios, as conversas, os dizeres poéticos, alvoreceres e crepúsculos junto da inabalável Kalina que o Jaguaretê decidiu levá-la consigo para dar pleno saciar ao desejo de ambos. Foram.
Subiram no dorso dos alados cavalos, que era como se ia pra Lua. Lá chegando, prepararam um festim com bebidas de frutas, carne assada e deliciosos caldos, pois o deus Jaguaretê tudo fez para bem agradar e enternecer sua adorada Kalina. Dançaram, comeram e beberam, depois se amaram com a fúria dos apaixonados. Esvaído em suas forças pelo prazeroso combate, Jaguaretê adormeceu ao lado de sua Kalina Netaika e, quando despertou, viu contrariado que quase passava da hora de trazer de volta para sua tribo a fêmea de seus desejos. Cuidadoso, obrigou-a a ficar nua para observar se não havia roubado o segredo do fogo, mas não, nada parecia indicar que a inocente Netaika tivesse ludibriado os deuses...
Quando a noite chegou, o Jaguaretê não pôde crer no que viu lá do alto! Os kadiwéus dançavam e cantavam em volta de uma fogueira repleta de espetos com carne de anta e cervo, bebiam às tantas o embriagador cauim... Buliam seus maracás. Netaika havia escondido uma brasinha nas entrepernas e furtara o fogo dos deuses!
Arrependido e desolado, Jaguaretê condenou todas as mulheres a sangrar, a cada ciclo lunar completo, o esconderijo da brasa que, dali por diante, teria um aspecto de pele queimada... Os deuses ainda proibiram o contato com os humanos e prenderam todos os cavalos com asas na Lua, deixando na Terra apenas os equinos de patas. Enraivecido pelo engano, Jaguaretê rolou sobre o borralho da fogueira da qual Netaika pegara a brasinha, rosnando e uivando sua dor de deus decaído; por isso, o amarelo cor de mel de seu pelo tornou-se todo sarapintado de preto.
Até hoje, tempos depois que os deuses mandaram para cá o Jaguaretê, os kadiwéus olham pra Lua e veem um cavalo com asas como o que levou Kalina para lá – de onde voltou com o fogo escondido – e por isso eles logo se afeiçoaram e amansaram os cavalos trazidos pra cá pelos brancos.