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Icleia Rodrigues de Lima
É graduada em Letras pela UFGO (1968), Mestra em Filosofia da Educação, pela FGV-RJ (1981) e Doutora em Educação, pela USP-FEUSP (1992). Foi professora do Curso de Graduação em Letras da UFMT, nos Programas de Mestrado em Educação da UFMT e da UEL-Londrina-PR, e também no Programa de Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO-IL-UFMT).

PIXÉ – Entre a ética e a estética, o que interessa à literatura?

ICLEIA LIMA – Ora, a ética e a estética sempre frequentaram a Literatura. É preciso lembrar essa vocação antiga da ética tratando do bem e da estética tratando do belo. São uma espécie de valores sempre mutáveis, sim, mas que não se pode negar ou apagar. Quem tem olho de ler um mínimo de autores e obras pode perceber o que vem “interessando” à Literatura através do tempo. A História conta! Na literatura clássica há uma observância das regras da poética greco-romana e a imitação de modelos perfeitos da natureza. A originalidade é um defeito e não uma qualidade da obra literária. O lugar-comum é desejável. Para a literatura dita romântica, o belo não está na imitação de modelos e regras, mas sim na expressão da subjetividade -- do eu. O belo passa a ser algo único, original, ímpar. Aí o lugar-comum é abominável: se cada pessoa é um indivíduo – um eu --, então sua expressão tem que ser individual. Esse princípio, que é seguido por românticos inveterados, acaba sendo desacreditado por alguns, que enxergam aí uma contradição, ou seja, a impossibilidade de expressão da subjetividade com uma linguagem, já que a linguagem é essencialmente social, onde há linguagem há o outro, etc. Os realistas por sua vez criticam essa subjetividade e vêem nela um escapismo do social ou de sua realidade. Para realistas, o belo, por mais feio que possa ser, são as mazelas da sociedade postas na obra literária. A historicidade do belo fica ainda mais evidente quando saímos da literatura e topamos com a pintura: enquanto a pintura clássica persegue a representação fiel do modelo perfeito, numa quase fotografia, o cubismo decompõe o que representa, sem  compromisso de fidelidade com a aparência real das coisas... Como o belo – e a estética --, também o bem – e a ética -- não é absoluto. Por exemplo, nem sempre a dominação e a exploração -- dos homens sobre as mulheres, dos europeus sobre os índios, dos brancos sobre os negros, dos heterossexuais sobre os homossexuais, dos cristãos sobre as demais religiosos -- foi considerada um mal. A literatura é abundante de exemplos em que essas formas de dominação e exploração são representadas como algo “natural”. A partir do momento em que a hegemonia do homem branco heterossexual cristão europeu começa a ser questionada, a literatura que a legitima começa a ser também questionada e, daí, solapada. A ética e a estética parecem sempre imiscuir-se uma na outra. Num momento o bem tende a romper-se com o belo, num outro parece tender-se este ou aquele a moralizar-se... O caso recente da proposta de revisão da obra de Monteiro Lobato faz pensar acerca da ética e da estética como “interesses” da literatura.  Lobato é agora acusado de ser racista. A ética e a estética se moralizam aqui no recente. É possível entender as raízes do que sentimos/fazemos/somos hoje em relação a mulheres, negros, índios, matutos, etc. revolvendo as camadas arqueológicas da sociedade que formam nosso imaginário mais fundo. Machismos, racismos e outros preconceitos sistêmicos não se formam da noite para o dia. Nem as idéias de bem e de belo. Nem as imisções moralizantes havidas entre ética e estética.  Nem os “interesses” da literatura. Podemos, por outro lado tomar a ética e a estética como ligadas, num pensamento aventureiro de paridade/pluralidade. Daí, a experiência estética será a expressão de uma sensibilidade coletiva e a ética será a expressão de um querer viver social, com ajustes e acomodações ao território local e entre uns e outros do mesmo chão.  Nesse sentido, ambas – ética e estética – também interessam à literatura.

 

PIXÉ – O livro chato pode ser um livro bom? Ou todo o livro chato é um livro ruim?

ICLEIA LIMA – Em matéria de literatura, eu cá não acredito que seja possível qualificar um livro como chato em si mesmo ou em absoluto. Chato, bom ou ruim são predicados relativos ao leitor. Um escritor que li nesse tempo de quarentena foi Machado de Assis. Foi prazeroso acompanhar linha a linha os contos do autor, a argúcia e a ironia machadianas na invenção das histórias vividas no Rio de Janeiro, no final do século XIX. Nos momentos em que lia e fruía os livros pensei no meu bisneto de 12 anos: como um adolescente típico de 2021, não vive , na quarentena ou fora dela essa experiência de ler Machado. Já lhe perguntei e a resposta foi: Que Machado??? E a mãe, minha neta, endossou: Nem eu; só li “a cartomante”. Prazerosa para esse rapaz é a fruição com seu smartphone dos jogos em grupo pelas redes sociais. Com certeza odiaria a leitura da bisavó, sem as imagens que ele recebe prontas pela telinha de seu apetrecho e que teria que construir nas páginas de um livro, com as formas, cores e movimento de sua imaginação. Chato é para meus netos a leitura escolar ou escolarizada, aquela feita sob uma ordem: Leia! Relatório! Fichamento! Livros chatos, na maioria, são chatos se ou quando lidos sob o imperativo da obrigação. Eu mesma, quando nos meus 14 anos, amei Alencar e sua Aurélia, enquanto achei Machado e sua Capitu enjoativos...

 

PIXÉ – A literatura tem sexo? E cor? A literatura tem alguma função social?

 

ICLEIA LIMA – A literatura tem sexo, a literatura tem cor, como a vida tem sexo e cor. Seria muito confortável se os dramas e as tragédias envolvendo conflitos de gênero e melanina tivessem apenas uma existência ficcional. Mas não tem. Eles, os conflitos, frequentam a vida sendo vivida todos os dias, fazendo mulheres negras e pobres sofrerem mais violência e morrerem mais do que mulheres brancas. Porém, não acredito em literatura feita de encomenda para combater machismo, patriarcalismo, homofobia, racismo e outras práticas e ideologias reinantes em nosso cotidiano. Principalmente porque elas tendem a se construir com base em uma visão unidimensional dos problemas que é profundamente redutora da complexidade da vida. E nada tem um lado só. Assim, não é assumindo bandeiras feministas e antirracistas que a literatura cumpre uma função social, mas sim nos fazendo parar diante da crueza dos fatos e nos provocando espanto e choque. O espanto e o choque provocados por uma literatura sensível às mazelas da vida têm o condão de nos humanizar e de nos fazer amorosos com o outro. É o que pode experimentar um leitor de um poema sem prática político-ideológica -- sem bandeira – como “ O bicho” de Bandeira: “Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos./ Quando achava alguma coisa;/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade./ O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem.”

 

PIXÉ – A literatura deve ser aplicada na escola? Não é um desfavor ao futuro leitor pensar que a literatura faz parte de um curriculum obrigatório?

ICLEIA LIMA – O texto literário está na escola desde que a escola é escola. Frequentei uma escola confessional católica para moças fazendo o “ginásio” e “curso normal na década de 1950/60. Não havia, no currículo, a disciplina “Literatura”, como há agora. Nem os cânones da literatura de língua portuguesa eram servidos às alunas em algum compêndio de textos literários, “Obrigatório” era a disciplina “Língua Portuguesa”, que disciplinava a fala, a escrita e particularmente a “redação” com as regras da gramática. Entretanto, a leitura fazia parte do quotidiano daquela escola agostiniana, que tinha uma biblioteca, que estimulava as alunas a ler e que emprestava livros. Foi uma atividade não disciplinar que disciplinou como se fora “literatura”. Bem antes disso, criança num grupo escolar, vivi outra experiência extra-curricular que deu certo. Não li literatura. Escutei literatura. Todos os dias, no pátio, à hora das filas formadas antes da entrada de todos os alunos nas salas de aula, uma professora, Dona Bebé Hummel entre 5 e 10 minutos, lia Monteiro Lobato. Não me recordo de nenhum distraído durante aquelas narrativas. Era o a voz dela cortando o silêncio do pátio sombreado do “29 de Outubro,” que se transformava no Sítio do Pica-Pau Amarelo. Narizinho chegava ali pela leitura da professora. E mais a boneca Emília. E o Visconde. E Pedrinho, Dona Benta, Tia Nastácia! Então acontecia de José Bento Renato Monteiro Lobato parecer levantar um lado da sobrancelha e piscar para a meninada...  Por que falo de uma vivência pessoal? Apenasmente para considerar que, com ou sem aula de literatura institucionalizada no currículo, o que acaba valendo para as duas situações é a presença de um professor entusiasmado pela literatura que acaba contaminando alunos, nem todos, com seu entusiasmo. Isso é decisivo. Foi decisivo para mim: o livro entrou na minha vida através da escola, mais e melhor, através de alguns professores apaixonados por literatura. Embora esse cenário de cultura primária tenha desaparecido nas últimas décadas do século XX, a questão que se apresenta à escola hoje em dia é, primeiro,  como cativar a atenção  de crianças e jovens dopados pela cibercultura para a leitura de textos literários e, segundo, como abrir um espaço no tempo fungível, consumido na tela de um smartphone, para o tempo demorado da leitura de um livro. Não é uma tarefa fácil, mas a escola e professores bons leitores são fundamentais para isso. O fato de a literatura ser obrigatória nem cheira e nem fede, o que conta é o que os professores e os alunos fazem com ela na sala de aula.  

 

PIXÉ – Vaidade, tudo é vaidade. Salomão dizia que não há nada de novo sob o Sol. Em termos de literatura contemporânea, sob esse abrasivo sol de vaidades, há alguma coisa de novo?

ICLEIA LIMA – Talvez seja mais relevante dizer de como a literatura, contemporânea ou não, é apresentada no contemporâneo.  No contemporâneo de Mato Grosso é a literatura na escola, para os jovens e para os mais graduados, é a literatura nas academias de letras, é a literatura nos mass media – em jornais, revistas, Rádio, Tv -- é a literatura na Tv fechada, no Teatro, no Cinema. É tudo isso, enfim, em WWW, e nas Redes sociais. Os alunos de escolas podem aprender/ler/fruir literatura, teoricamente ou por força de uma pandemia de 2020 até agora, 2021, em aulas à distância, desde suas casas, através de tecnologias modernas e eficientes. Entretanto, as escolas dos alunos continuam atrasadas no domínio do conhecimento dessas tecnologias, umas por não se terem interessado nos últimos 40 anos nem por jornais, revistas, Tvs ou celulares em salas de aulas, outras por continuarem muito pobres. As aulas de leitura e literatura das crianças e dos adolescentes em quarentena tendem a ser mera repetição ou arremedo em casa dos moldes havidos em escolas. A literatura lida e apreendida no ensino médio continua tendo a serventia de trampolim para os exames do ENEM e acesso às universidades -- aos cursos de Letras -- que tendem a distanciar-se das comunidades a que servem, dos escritores regionais, a calcarem seu planejamento curricular em propostas de IESs do eixo Rio-São Paulo, a avaliar sua produção de ensino e pesquisa em literatura por critérios quantitativistas. Nunca se produziu tanta literatura em Mato Grosso, tantos títulos e de tanto esmero gráfico-editorial. Todavia, a literatura produzida pelos autores mato-grossenses continua subutilizada na rede de ensino do estado, ausente das bibliotecas de suas escolas e desconhecida de seus professores. Tem havido muitas coisas novas e muitas coisas importantes. Parece que as coisas novas não são tão importantes e as coisas importantes não são tão novas.

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