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Icleia Rodrigues de Lima
É graduada em Letras pela UFGO (1968), Mestra em Filosofia da Educação, pela FGV-RJ (1981) e Doutora em Educação, pela USP-FEUSP (1992). Foi professora do Curso de Graduação em Letras da UFMT, nos Programas de Mestrado em Educação da UFMT e da UEL-Londrina-PR, e também no Programa de Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO-IL-UFMT).

A BONECA, O ESPAÇO E O CORPO:
NOTAS PARA UMA ANÁLISE PROXÊMICA DE UM ROMANCE DE EDUARDO MAHON

“A família é como a varíola: a gente tem quando criança e fica marcado para o resto da vida."
Jean Paul Sartre

“Eles não podem tirar isso de mim” é o título inscrito na capa do novo livro de Eduardo Mahon, pronto e acabado pela Carlini e Caniato, neste dezembro de 2020. Uma leitura da capa pode principiar uma leitura do romance. Ora, uma capa, mais do que para proteger o miolo de um livro, serve para desvelar o que está cobrindo. No continente já estão os contornos do conteúdo, a história.
Noticiada previamente nas redes sociais pelo autor, a capa teve dos visitantes não muito diferentes comentários. As três bonecas estampadas, para uns poucos “fofas” ou “inocentes”, sinalizavam uma história “misteriosa” ou “medonha”, “macabra” ou “sinistra”, para a maioria. A boneca do livro anunciado parecia, enfim, “irmã do Chucky”, desligada do lúdico e mais rente com o trágico. 
O que foi sugerido antes se comprova já no fluxo acelerado da primeira leitura, na onda que invade o texto literário para a descoberta e vivência das impressões que ele provoca. A boneca do romance é real: é a concretude de um brinquedo que é feito/desfeito/refeito pela personagem narradora da história. No refluxo de uma segunda leitura, com o fito de preensão mais detida – e desacelerada – dos detalhes salientes do texto literário porque literário, a boneca é também um símbolo e um descritor: é uma representação de corpo de criança no feminino, que é movido/sujeitado/transformado por um destino. Essa idéia de corpo e de destino encoraja o leitor crítico para uma aventura do pensamento, qual seja, a de juntar à análise literária uma análise proxêmica de “Eles não podem tirar isso de mim”.
Para a Proxêmica de Edwad T Hall interessa o estudo dos comportamentos humanos de conformidade com os espaços e as distâncias físicas de que disponham entre indivíduos e entre grupos de existência e pertencimento, de conformidade, pois, com os usos que possam fazer de suas extremidades corporais. É uma antropologia do espaço e das organizações mais uma antropologia do corpo e do imaginário... Numa abordagem proxêmica, para a qual aqui seguem algumas notas, a idéia de corpo é a de um corpo sensível, com os cinco sentidos, tomados não apenas psicologicamente mas também na sua materialidade e animalidade. Daí que “corpo social” e “espaço social” em “Eles não podem tirar isso de mim” não serão duas meras metáforas.
O ESPAÇO na história desse livro é feito de partes do espaço maior de uma grande cidade. Num sobrevôo, é a visão clara de uma escola, três casas-moradia, um parque, um viaduto e a entrevisão de um reformatório e um sanatório. A escola tem um portão e um guarda-guardião que permite ou impede a entrada do que chega, conforme a hora do relógio. As paredes são pichadas e re-pichadas e os livros repetem rabiscos de alunos de gerações que tem passado e odiado passar. Há um laboratório com um professor que explode de cansado e imprestável e se aposenta por invalidez. Pelos corredores ronda com passo militar um diretor que tem uma boca feito um traço duro, reto e horizontal, óculos cobrindo os olhos e um chaveiro balançando na cintura. O diretor é o gestor do espaço delimitado da escola, o que garante a ordem, faz cumprir as regras e a Lei O lugar da assistente social Jô, de exígua envergadura e voz pequena é um cubículo, no tamanho para caber seu pote de balas, enquanto formula perguntas e preenche formulários com respostas de alunos que não respondem. Há uma quadra com degraus formando uma “montanha”, onde sobem “crianças difíceis” se posicionando no alto como os “gorilas”, enquanto os medrosos permanecem como os demais no baixo, como os “patos”. Não se pode ver as salas de aula, nem as lições ou encontros de professores com alunos dentro delas. Deve ser que o telhado cobre essas sístoles e diástoles que acontecem dia após dia com o enchimento e esvaziamento de alunos. Com o não ter telhados, o parque é o lugar apropriado para revoadas, tanto de pombos em centenas e famintos de migalhas como de alunos em pares famintos de vôos. Das casas-moradia avistadas as mães estão quase ausentes e uma é morta e os pais estão sempre presentes e um é quase morto. Na malha urbana e malha dessa história, uma das vias passa sobre um viaduto e sua fundação funda e esconde a caverna e sobrevida de um mendigo que tem um cão e um pistão. O reformatório e o sanatório deixam antever muita sombra do que possam sanar ou reformar. Mas há imagens moventes de enfermeiras medicando como se oferecendo balas, e de médicos como Dr. Oswaldo assistindo, formulando e preenchendo formulários como Jô.
O CORPO em “Eles não podem tirar isso de mim” é um “corpo social” num dizer ampliado ou enobrecido de sociologia ou de poesia. Porém, num dizer estrito ou obsequiado de Etologia, é um corpo que serve a outros e que se serve de outros. Isso pode ser observado, enquanto se segue as personagens da história, se – e só então se – tomadas como sujeitos que se movem, consoante a proximidade havida entre uns e outros. A menina que conta sua história revela no contar a distância corporal que tende a guardar dos demais. É uma distância pessoal, espécie de bolha, que a resguarda enquanto também a aproxima daqueles com quem quer estar junto. Jô, Paulinho, Marcelo, Jonas, Caco e a cadela Latinha são o seu próximo. Nessa distância pessoal – equivalente a um côvado ou ao comprimento de um braço estendido --   a menina pode perceber as formas dos corpos de seu próximo. Pode ouvir as vozes e ruídos de todos, ver o vermelho das escleróticas, a sujidade das roupas, os gestos mínimos e maiores, sentir o cheiro das emanações físicas do outro, o gosto da comida em comum com o outro. Pode, se o quiser mas não precisa, tocar o outro com quem se junte. É essa mesma espécie de bolha que os demais da história -- Jô, Paulinho, Marcelo, Jonas, Caco e Latinha, a cadela --  têm igualmente sobre si e para igual serventia de proteção. 
Momentos de exceção acontecem em pontos do espaço dessa história. São momentos em que a distância pessoal passa a distância íntima. Decorrem repetitivos no parque:  a menina se envolve e se abriga sob a roupa e entre os braços de Jonas. Um e outro suprem nesses momentos uma necessidade ou fome mamífera e humana de pele -- tato e contato -- e de acolhimento. A bolha da menina não se rompe, pois com a bolha de Jonas torna-se uma só. Decorrem repetitivos na casa-moradia da menina: o Tio Alberto rompe essa distância pessoal, tem com a menina uma distância íntima e, nesta, rompe a fase mais próxima. Se a distância íntima entre os humanos tipifica aquela para os atos necessários e assentidos de tatilidade e ou do amor em quaisquer de seus significados, tipifica também aquela que serve à luta, às pulsões de agressividade e aos atos de violência. Assim, a menina é bolinada, violada e a partir dessa feita, dia após dia abusada. Outros rompimentos de distância pessoal e protetora acontecem com outros da história. Com Jonas principalmente, quando é espancado de cinto, chinelo, vara e mangueira. Com Marcelo que vai e volta do reformatório onde pode ter a cabeça raspada. Com o que assiste aos espancamentos da mãe, com o que assiste à quase morte interminável do pai. Entretanto, esse rompimento de distância pessoal de todos da história e que acontece quando as personagens são vítimas, acontece também quando são elas as agentes de agressão e violência. Jonas agride espanca e escoiceia colegas, assim como Marcelo quebra e explode carro e laboratório na escola. Jonas e Marcelo se voltam contra si mesmos e seus próprios corpos tatuam-se de colar de arame farpado e lágrima negra, de auto flagelação.  Paulinho, que se mostra o inteligente, o pacífico e o apaziguador do grupo, é o que se junta aos meninos para espancar e matar a coices o mendigo Caco e a cadela Latinha. E a menina incendeia o corpo dormido do Tio. 
Essas notas com o rudimento de uma análise literária imiscuída de uma análise proxêmica querem ser aqui uma sugestão de postura, de heurística outra, à parte de ser outra leitura possível de “Eles não podem tirar isso de mim”. Jamais será uma recomendação de panacéia mas de um adjuvante...

Toledo, Paraná, Primeiro dia de Verão de 2020

© 2019 - Revista Literária Pixé.

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