Helvio Moraes
Possui Mestrado (2005) e Doutorado (2010) em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Realizou estágio de doutorado na Università di Bologna. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, credenciado (docente permanente) no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL, com sede em Tangará da Serra. De fevereiro de 2015 a fevereiro de 2016, foi visiting professor junto ao Dipartimento di Scienze Politiche e Sociali da Università degli Studi di Firenze, Itália. Publicou o livro A Cidade Feliz (Ed. da Unicamp, 2011), que compreende o estudo e a tradução comentada da utopia de Francesco Patrizi da Cherso. Na carreira artística, lançou recentemente o álbum musical “Profano Absoluto”.
SOBRE O REALISMO E A ARTE DE EDWARD POVEY
Realismo emocional. É assim que Edward Povey define sua arte, ou, como ele prefere dizer, os objetos que cria, objetos para serem pendurados nas paredes, não arte per se. Objetos cobrindo as paredes, que mantêm o cheiro da oficina escura de seu pai, a atmosfera do perfume de sua mãe e outras tantas reminiscências sensoriais.
O convite para abordar esse realismo veio acompanhado de duas provocações: toda arte é anti-realista? Até que ponto a categoria do “realismo” existe?
Comecemos por estas perguntas, com a certeza de que o termo “realismo” é por demais complexo e comporta os mais diversos significados. Parece ser também relativo. Para a mentalidade medieval, a realidade do mundo transcende a matéria, é composta por ideias universais, perenes e imutáveis, cuja existência independe dos corpos e objetos que compõem esse mundo tangível, sensível, dotado de concretude. O realismo medieval é um realismo metafísico e nem por isso deixa de ser visto como realismo. Pensemos no realismo dantesco. Na arte renascentista, percebe-se a crescente presença de um “realismo enganador”, segundo a definição de Peter Burke. A arte produz ou busca produzir a ilusão de que não é arte. Ao lado deste realismo, ainda segundo o autor, é possível notar a emergência de um “realismo doméstico”, na escolha do que é cotidiano e comum como assunto para as artes, e de um “realismo expressivo”, em que a realidade externa é manipulada para exprimir algo que existe em seu interior. Seja qual for o tipo, fica evidente que é a realidade empírica e as formas sensíveis o fulcro da observação e da produção artística. Ademais, ainda com Burke, talvez não seja possível irmos muito além, no que diz respeito à estética realista, da constatação de que “parece mais útil partir do fato empírico de que algumas sociedades, assim como alguns indivíduos, se interessam particularmente pelo mundo visível, conforme se lhes aparece”, por mais perfunctória e imprecisa que possa soar esta sua formulação. Além de relativo, o realismo é um efeito e depende de um sistema de convenções.
Buscar ser fiel à natureza, à realidade material, ao mundo das formas sensíveis, enfim, é apenas um de tais sistemas. E, ironia das ironias, na arte, somente ao se deformar a realidade pode-se melhor representá-la. Leyla Perrone-Moisés cita um caso emblemático: uma experiência realizada por Céline, que a autora classifica como realista, partiu da observação de que um bastão, quando mergulhado na água, parecia torto pelo efeito da refração, de modo que, querendo o artista fazê-lo parecer reto, via-se obrigado a quebrá-lo antes de mergulhá-lo na água. O que Perrone-Moisés, a partir deste exemplo, conclui para a arte literária, pode muito bem se estender às artes em geral: a água que nos obriga a entortar o real é a linguagem artística.
A velha ideia da arte como imitação da natureza, como mera cópia do mundo e das coisas aparentes (Aristóteles ainda continua sendo mal interpretado por muitos, neste sentido) não se sustenta, mas, a meu ver, isto não nos obriga a concluir que toda arte seja anti-realista. Lembro-me de uma passagem de Robert Klein: “Uma imagem ‘viva’ não se parece com seu modelo, pois não visa a restituir a aparência, mas a coisa. Reproduzir a aparência da realidade é renunciar à vida, limitar-se, não sem dificuldade, a ver da realidade apenas a aparência, transformar o mundo em espectro”.
É a partir das questões propostas e com base nesses recortes um tanto fortuitos que eu – nesse gesto temerário de não especialista em artes plásticas – brevemente apresento alguns elementos do realismo emocional presente na obra – ou, pelo menos, na produção mais recente – de Edward Povey.
Já alguns aspectos técnicos nos possibilitam entender a singularidade de sua estética realista. Primeiramente, a ideia de criação de um cenário. Para o artista, cada objeto que compõe a tela precisa ser feito, na maioria dos casos, por suas próprias mãos; ou, de algum modo, precisa ser manipulado, como no caso da cadeira azul em “Cast” (2021). O artista já tem em mente que cadeira usar. Assim, ele a procura e a adéqua – pintando-a, envelhecendo-a –, até que fique exatamente conforme à que tinha em mente. Na mesma pintura, o conjunto de fotografias dispersas sobre a mesa e sobre o chão são fotocópias de fotografias do acervo familiar do artista, manipuladas de forma a dar a impressão de “estarem na família desde sempre”, embora não tenham mais de seis meses. Pássaros de origami, mesas, xícaras de chá, colheres; tudo é feito ou manipulado, apreendido pelos sentidos e disposto como num cenário. A razão para isto é que o artista acredita que tudo se impregna de uma carga emocional através deste processo. A superfície de cada objeto adquire sua consistência a partir do momento em que mantém isto que Povey define como carga emocional.
Assim como com os objetos, o trabalho com as modelos (na grande maioria dos casos, são mulheres que posam para o artista) também é realizado no sentido de se chegar a um ponto preciso de carga emocional. Há um trabalho minucioso com as formas de expressão e postura do corpo, em que, além dos mínimos detalhes dos gestos, da composição dos tecidos, Povey as orienta no sentido do que pensar, do que sentir, buscando fazê-las reviver certas memórias e emoções de suas vidas, até conseguir captar precisamente o semblante, o olhar, a atmosfera que tinha em mente para uma determinada pintura, o que pode levá-lo a recorrer a até quatro modelos e mais de cem fotografias com cada uma, para cada novo projeto.
A pintura de Edward Povey não é narrativa, muito menos biográfica, como o artista mesmo afirma. O instante carregado de tensão, lassidão ou qualquer outra experiência emotiva é flagrado em sua efemeridade, o que se observa no movimento ou disposição dos objetos, mas, principalmente, nos corpos retratados, com suas imperfeições, os sinais da passagem do tempo e marcas de uma vivência profunda, conferindo ao todo o sentimento de uma vida “posta entre os parênteses do nascimento e da morte”, precisamente como ela é. Exemplar, neste sentido, é “Amplexum” (2021), em que uma gama de sentimentos parece tomar o corpo da mulher que fortemente se abraça, um momento de entrega solitária, em que prazer e dor parecem se misturar, tendo ao fundo sinais da passagem do tempo e da memória, numa espécie de moldura inacabada em que se destacam a página de uma agenda e as pilhas de copos, colheres e xícaras de café. Para Povey, esta é a função do artista, apenas mostrar a verdade do que somos, sem qualquer pretensão didática ou proselitista: “eu quero conduzir as pessoas que veem minhas pinturas pelas passagens mal iluminadas da minha vida e, por meio de minhas figuras e interiores, explorar o que é ser humano”.