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Helvio Moraes
Possui Mestrado (2005) e Doutorado (2010) em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Realizou estágio de doutorado na Università di Bologna. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, credenciado (docente permanente) no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL, com sede em Tangará da Serra. De fevereiro de 2015 a fevereiro de 2016, foi visiting professor junto ao Dipartimento di Scienze Politiche e Sociali da Università degli Studi di Firenze, Itália. Publicou o livro A Cidade Feliz (Ed. da Unicamp, 2011), que compreende o estudo e a tradução comentada da utopia de Francesco Patrizi da Cherso. Na carreira artística, lançou recentemente o álbum musical “Profano Absoluto”.

SOBRE O AMOR E SHAKESPEARE

Para muitos leitores de Shakespeare, o soneto CXVI, possivelmente o mais conhecido de toda a série, traz a completa definição do que seria, para o Bardo, o amor:


De almas sinceras a união sincera 
Nada há que impeça: amor não é amor 
Se quando encontra obstáculos se altera, 
Ou se vacila ao mínimo temor. 
Amor é um marco eterno, dominante, 
Que encara a tempestade com bravura; 
É astro que norteia a vela errante, 
Cujo valor se ignora, lá na altura. 
Amor não teme o tempo, muito embora 
Seu alfange não poupe a mocidade; 
Amor não se transforma de hora em hora, 
Antes se afirma para a eternidade. 
Se isso é falso, e que é falso alguém provou, 
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou. 

(Tradução de Anna Amelia Queiroz Carneiro de Mendonça)

Dentre as inúmeras páginas já publicadas sobre este soneto, gostaria de destacar duas perspectivas de leitura divergentes. A primeira, talvez a mais difundida e aceita, vê na abordagem que o poeta faz do amor uma forma idealizada. Para além do contingente e efêmero – matéria bruta de suas peças, mas também latente em sua lírica –, Shakespeare teria buscado definir o amor no transcendente, o que o aproximaria do Platão de O Banquete, ou de Baldassare Castiglione, no Livro IV de O Cortesão, em que o italiano apresenta justamente uma leitura neoplatônica da noção de amor, de notável fortuna no Renascimento. A imagem do amor como farol eterno ou astro que norteia o vagar errático dos amantes, que vence obstáculos sem hesitação ou mudança e que, vencendo o tempo, “se afirma para a eternidade”, tenderia mais a uma ideia supra-histórica, acima de um sentido particular ou individual. 


A segunda perspectiva vincula-se a uma leitura circunstancial dos sonetos. Ao invés de serem lidos (tão somente) como peças autônomas e suficientes dentro do conjunto de 154 sonetos, os poemas são interpretados dentro do subconjunto a que pertence (o de incentivo ao casamento e à geração de filhos, o do poeta rival, da Dark Lady, etc.) e conforme a posição que ocupam na sequência estabelecida já nas primeiras edições, que se inicia com uma visão confiante e positiva do(a) amado(a) e da natureza e culmina num sentimento de angústia, de ceticismo e de cisão entre os amantes e entre o sujeito lírico e o mundo que o circunda – como se houvesse, de fato, um enredo que se apresenta de forma lírica. O soneto CXVI situa-se entre os últimos dedicados ao Belo Jovem (possivelmente o conde de Southampton), que formam um subconjunto (os rebuke sonnets, ou sonetos de repreensão), marcado pela crise que culmina no triângulo amoroso vivido pelo poeta, pelo Belo Jovem e pela Dama Morena (a quem são dedicados os sonetos CXXVII em diante). Assim, contrariamente a uma forma idealizada de se conceber o amor, o poema em questão seria marcado pela indignação e pela dor do amante, ao perceber que o amado se esquiva ou evade-se. Seria, na verdade, uma resposta a algo que o amado tivesse apenas expressado ou feito, e que se mantém fora da moldura do poema, o que não nos impede imaginar do que se trata, pois o amante percebe, com desolação, uma mudança (alteration), um distanciamento e a possível ausência do amado (no original, or bends with the remover to remove). O que segue, portanto, ao contrário de uma ode, seria uma angustiante tentativa, que se quer persuasiva, de perpetuar o amor. Ela transborda mundanidade e pathos.


Obviamente, o soneto, per se, pode ser lido em uma ou outra chave interpretativa, mas parece-me que a segunda faz mais justiça ao espírito shakespeariano. Muito raramente – se é que o faz – Shakespeare busca estabelecer uma ideia ou noção fixa, definitiva, independente de uma circunstância dada, política, histórica, individual. Sua visão de mundo parece ser mais tributária de Lucrécio e Ovídio que de Platão. Portanto, o amor em Shakespeare tem um aspecto mais sensual e metamórfico que filosófico; é, antes, sentimento e experiência do que conceito. O poeta o perscruta em suas inumeráveis gradações, em suas diversas manifestações, em todos os seus estágios, em suas complexas relações com outras paixões humanas, como o ciúme, a ambição, a soberba, etc. Basta pensarmos no enorme e variegado rol de personagens que criou em sua obra teatral, figuras tão peculiares, tão idiossincráticas. Eros mostra faces distintas em Romeu e Julieta, em Macbeth ou em Muito Barulho por Nada. O amor filial de Hamlet (é possível acreditar que haja?) difere grandemente do de Cordélia, do de Miranda. A philia (e eros) entre Antônio e Bassânio difere da amizade de Hamlet e Horácio, da de Romeu e Mercúcio. E assim poderíamos elencar várias personagens em suas mais diversas relações de amor, não raro intimamente ligadas ao ódio, como o sentimento que Iago nutre por Othelo. É óbvio que o teatro é o espaço por excelência onde explorar tamanha diversidade de matizes do amor. Não deve ter sido fortuito, portanto, o gradual afastamento de Shakespeare da linguagem lírica e o também gradual aprimoramento de sua linguagem dramática justamente no momento em que escreve Romeu e Julieta, seu primeiro grande êxito como dramaturgo, e as peças subsequentes. Agnes Heller observa que o bardo mostra-se sempre mais inclinado à singularidade de determinada ação, no choque de personalidades, na complexidade de um ser excepcional, do que às regularidades na história política, ao que eu acrescentaria: à consistência e constância de um conceito filosófico. Em um dos melhores textos  que conheço sobre os sonetos shakespearianos, o professor Carlos Antônio Leite Brandão afirma que Shakespeare trata o amor “de forma pessoal e sensual, paixão avessa a racionalizações e que domina o amante por inteiro, submetendo-o às vagas do mar amoroso. Ele fala em termos de memória, imaginação e sentimento e não em termos filosóficos ou ideais. Não diz o que é o amor, mas o que ele significa para o amante e nele provoca. […] A abordagem anímica e sensual do Bardo é mais “desavergonhada”, não separa alma e corpo, nem sentimentos da razão. Nele, o amor é abordado aquém da ideia, no mundo pré-reflexivo das paixões, e seus sabor e fel se perderiam se a razão lógica conseguisse compreendê-lo”.


Portanto, esse amálgama de elementos que, diversamente, a filosofia ou até mesmo a poesia de um autor monumental como Dante buscam separar, definir, classificar, ajuda-nos a entender não somente o conteúdo dos sonetos, mas também a dramaturgia shakespeariana. Sendo assim – e ciente do espaço de que disponho para fazer essas breves considerações –, elejo Romeu e Julieta para concluir meu texto. Primeiramente, porque, nessa peça, tal mistura se estende à sua própria estrutura e ao belíssimo diálogo que o poeta estabelece com a já consolidada tradição sonetística legada por Petrarca (para dizermos o mínimo sobre a relação de Shakespeare com a tradição literária). Em segundo lugar, buscando dar mais coesão num texto sobre tema tão amplo, porque considero Romeu e Julieta a transposição dramática de tudo o que se apresenta no soneto CXVI; como muitos já apontaram, Romeu e Julieta é também impregnada pelo lirismo dos sonetos, que Shakespeare ainda praticava. 


O oxímoro talvez seja a figura de linguagem mais empregada ao longo da peça, e talvez não seja excessivo dizer que sua espinha dorsal se sustenta sobre o contraste entre ódio e amor, ou, para dizer com Romeu, “amor odiento, ódio amoroso”. Outros tantos contrastes vão surgindo a partir desse ponto fulcral, como dia versus noite, juventude versus maturidade, fugacidade versus perenidade, etc., numa construção extremamente simétrica que parte de opostos (que, não nos esqueçamos, se mesclam, justamente como acontece num oxímoro). 


Na primeira cena em que surge na peça, Romeu faz uso desmedido de oxímoros, que, numa amplitude semântica formidável, refere-se à situação política de Verona (a rixa entre as facções), à sua confusa condição amorosa (ainda não conheceu Julieta) e até mesmo à saturação estética da produção de sonetos em moldes petrarquianos. Parece ter passado o amanhecer fora dos muros de Verona, lamentando um amor não correspondido e fazendo exercícios poéticos. Ao adentrar a cidade e perceber que houve tumulto (“Houve briga aqui? Não me conte, essa história eu já conheço”), diz ao primo, Benvólio, que o interpela, aquilo que parece sentir:

Ó qualquer coisa que nasceu do nada!
Ó densa leveza, séria vaidade,
Caos deformado de bela aparência!
Pluma de chumbo, fumaça brilhante,
Fogo frio, saúde doentia,
Sono desperto que nega o que é!
Esse amor sem amor é o que eu sinto.

Como podemos perceber, Romeu é, ainda, um mau poeta. Seus versos são absolutamente convencionais e carentes de sentido. Mas os profere como faria qualquer jovem na Inglaterra elisabetana de fins de século, quando o soneto era moda. O último verso é carregado de ironia, pois Romeu acredita estar realmente apaixonado por Rosalina; mas logo verá que “esse amor sem amor” é o que, de fato, sente. 


O encontro com Julieta marca, de modo repentino, o fim da adolescência pueril de ambos. Este encontro os eleva a uma percepção muito superior de si mesmos, das pessoas com quem convivem e de sua delicada situação. Como nas melhores novelas de Boccaccio, a força impetuosa de Eros desperta os amantes, movimenta suas disposições interiores e os estimula a agir. Recordemos, então, a mais célebre cena de amor da literatura ocidental, estruturada, não por acaso, em forma de soneto:

 

ROMEU
Se a minha mão profana esse sacrário,
Pagarei docemente o meu pecado:
Meu lábio, peregrino temerário,
O expiará com um beijo delicado.

 

JULIETA
Bom peregrino, a mão que acusas tanto,
Revela-me um respeito delicado;
Juntas, a mão do fiel e a mão do santo
Palma com palma se terão beijado.

 

ROMEU
Os santos não têm lábios, mãos, sentidos?

 

JULIETA
Ai, tem lábios apenas para a reza.

 

ROMEU
Fiquem os lábios, como as mãos, unidos,
Rezem também, que a fé não os despreza.

 

JULIETA
Imóveis, eles ouvem os que choram.

 

ROMEU
Santa, que eu colha os que os meus ais imploram. (Beijam-se)

O gênio de Shakespeare brilha inconteste nestes versos. O poeta dá novo vigor ao gênero do soneto, nessa espécie de “exercício lúdico” em que retoma – e reelabora em sentidos completamente novos – vários dos elementos caros da poesia medieval (e petrarquiana, obviamente), dos quais destaco pelo menos dois: a “senhora-santa”, modelo de todas as virtudes morais e religiosas, que, por sua excelência, está muito além do alcance, do contato do homem que por ela se apaixona; a imagem do romeiro em peregrinação ao altar de uma santa, para a purgação de seus pecados. Na cena em questão, o peregrino ousa o toque, com gestos e palavras carregadas de erotismo e ironia, no que é plena e igualmente correspondido pela “santa”, uma santa erótica. A resposta de Julieta estimula Romeu a prosseguir e, assim, o casal constrói esse belíssimo soneto que se conclui com o primeiro beijo. Minutos atrás, eram ainda dois adolescentes que muito prontamente seguiam as convenções sociais do grupo a que pertenciam. Agora, Eros torna-se o deus (“o senhor do meu peito senta-se com calma em seu trono”) que orienta as ações do casal e o transporta para além e acima dos hábitos e conveniências de Verona. Na leitura de Northrop Frye, “o Deus do Amor baixou em dois adolescentes talvez bastante comuns e os arrebatou para uma outra dimensão da realidade. Assim, a fala de Capuleto e o soneto de Romeu e Julieta, duas experiências verbais tão diferentes como se fossem de planetas distintos, passam-se na mesma sala e são interpretadas no mesmo palco”. Como duvidar do poder desse deus, ao ouvir de Julieta que, horas antes, dizia à mãe “mais longe eu nunca hei de ir, que o vôo que a senhora consentir”, as palavras que realmente a definem na peça, após ter sido tomada de amor?


Minha afeição é como um mar sem fim, 
Meu amor tão profundo: mais eu dou
Mais tenho, pois ambos são infinitos.


Julieta agora percebe, talvez mais que seu amado, algo em si e no mundo que somente o amor lhe proporciona. É impossível que não viva, a partir de então, em outra dimensão da realidade (como quer Frye), que deslegitima uma tradição em vias de se exaurir, embora seu ato só lhe possa levar a um fim trágico. O casal está completamente só na experiência de uma nova forma de sentir o mundo. Nesse sentido, Julieta pode ser vista, conforme quer Harold Bloom, como a primeira personagem feminina moderna, ao incorporar o choque inconciliável entre os mundos medieval e moderno, ao firmar-se como dona de seu corpo, de seu desejo e de seu amor.


Muito mais que um deus de contemplação, o amor em Shakespeare é uma força (e)motiva e produz as mais diversas reações e sentimentos nos espíritos por ele tocados. É indomável e não aceita limites ou definições precisas. Não está além da experiência humana, ao contrário, dá-lhe matizes diversos, marca-a em todas as suas fases, define as sendas imprevisíveis de seu caminho. Trágico, cômico, romântico, lírico e, por vezes, até mesmo cético (de que tipo é o amor que Mercúcio proclama?), ele se funde a outros afetos e paixões da variada e enorme galeria de personagens do poeta, compondo com ela as histórias inesquecíveis que ele nos legou.

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