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Helvio Moraes
Possui Mestrado (2005) e Doutorado (2010) em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Realizou estágio de doutorado na Università di Bologna. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, credenciado (docente permanente) no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL, com sede em Tangará da Serra. De fevereiro de 2015 a fevereiro de 2016, foi visiting professor junto ao Dipartimento di Scienze Politiche e Sociali da Università degli Studi di Firenze, Itália. Publicou o livro A Cidade Feliz (Ed. da Unicamp, 2011), que compreende o estudo e a tradução comentada da utopia de Francesco Patrizi da Cherso. Na carreira artística, lançou recentemente o álbum musical “Profano Absoluto”.

PIXÉ – De início, é importante falarmos sobre o impacto da crítica. Não há um substancial público leitor no Brasil. Temos pouco espaço na imprensa e nas mídias em geral. Os prêmios são escassos e não movimentam a opinião pública. Nesse contexto, no que a crítica pode colaborar com o leitor brasileiro não especializado?

HÉLVIO MORAES – De fato, não há um substancial público leitor no país. Mas é preciso levar em consideração que, entre os anos de 2011 a 2015, houve um aumento de 6% no número de pessoas que, numa pesquisa publicada na Folha de São Paulo em 2016, o IBOPE definiu como leitoras (que compravam ou tinham acesso a pelo menos um livro a cada três meses). Um público leitor que abrange 56% da população brasileira ainda está longe do ideal, principalmente se compararmos este percentual com os 88% de leitores na França, mas já é um alento. Outro dado que considero relevante: 2020, obviamente, foi um ano atípico. Contudo, em novembro, o mercado editorial estava comemorando um aumento de 25% em volume e 22% em valor dos livros vendidos, se comparado com o mesmo período em 2019. Resumindo, então, se quisermos ser otimistas em meio à situação caótica que vivemos atualmente: parece haver um movimento positivo em relação à leitura e à formação de leitores no país.

Como estudioso e crítico de formação e carreira universitárias (não saberia falar sobre as outras formas de crítica), embora saiba que temos pouco espaço na imprensa, é preciso criar estratégias para acompanhar esse movimento e, o mais que possível, intensificá-lo. É de amplo conhecimento o fato de que, com a criação dos cursos de pós-graduação na área de Letras, já no fim da década de 60, e sua gradual ampliação nas décadas subsequentes, a crítica literária teve uma também gradual perda de espaço em veículos de mídia de maior alcance público (revistas, jornais), e acabou por se consolidar nas universidades. A dita “crítica impressionista” deu lugar a estudos mais especializados. O intelectual diletante deu lugar ao professor especialista. Logicamente, este é um processo bem mais complexo do que podem abarcar essas linhas gerais que forneço aqui, mas o ponto a que quero chegar é que, salvo algumas exceções, a crítica literária acabou construindo suas torres de marfim, em que pese o fortalecimento do discurso especializado, ou o que hoje chamaríamos de verticalização do conhecimento. Nossas teses alcançam um grupo de colegas, mas não é comum que se propaguem para além dos muros da universidade sob formas outras que não a do “texto de tese”. As próprias diretrizes da pós-graduação no país nos estimulam a quase exclusivamente optar pela publicação em revistas especializadas, sem reconhecer as vantagens que outros veículos midiáticos possam ter. Falamos para nossos pares, quando muito.

Com a consolidação das redes sociais e de outros meios de difusão do conhecimento pela internet, falar sobre autores e livros de forma não acadêmica começou a se tornar uma prática relativamente comum, que vai do comentário banal a uma entrevista ou debate de maior complexidade. Eis o problema, mas também parte da solução. O crítico também precisa ocupar esse espaço. Precisamos encontrar meios de traduzir o conhecimento especializado para o entusiasta da literatura que não necessariamente se vê como, ou quer se tornar, um especialista. E, sem querer polemizar, acho que às vezes temos que nos permitir também a curiosidade e o olhar do diletante.

Portanto, buscar maior inserção nesse espaço por meio de uma adequação do discurso acadêmico às novas formas e dimensões textuais e audiovisuais que vão se estabelecendo pode ser um modo de a crítica alcançar (novamente?) o leitor comum.

 

PIXÉ – Qual a diferença mais marcante nos estudos literários dos anos 90 para cá? Os pesquisadores parecem ter abandonado os clássicos como se as pesquisas anteriores já tivessem tratado tudo o que seria possível. Há uma tendência em investigar a novidade? Os alunos têm medo da produção canônica? Na sua opinião, há espaço para uma reflexão inovadora sobre obras europeias consagradas desde o século XIX? Ou a crítica brasileira deveria mergulhar na produção nacional?

HÉLVIO MORAES – Após um considerável período em que abordagens imanentes ao texto literário (associadas sob o nome de “estruturalismo”) conviveram, não de forma pacífica, com abordagens sociológicas e com a teoria marxista (que também se abrigavam sob o imenso nome/“guarda-chuva” da História Literária), nos anos 90 começaram a ganhar força alguns movimentos que se consolidaram definitivamente nessas primeiras décadas do século XX e que guardam uma relação com o desconstrutivismo (a nova história, a crítica feminista, o pós-colonialismo, etc). Os textos canônicos não foram abandonados, mas relidos por meio de novas lentes teóricas. Como estudioso dos séculos XVI e XVII, um exemplo que posso citar é o de vários textos escritos sobre A Tempestade, de Shakespeare, com um constante foco na personagem de Caliban como representação do homem americano ou africano, oprimido e colonizado. No campo do neo-historicismo, Stephen Greenblatt escreveu um estudo brilhante e ofereceu uma leitura inovadora da tradição epicurista por meio da história do De rerum natura, de Lucrécio. Às vezes, o estudo de autores e textos considerados menores, requer também o estudo dos textos clássicos, como a pesquisa que fiz sobre a obra de Francesco Patrizi da Cherso e sua patente relação com a Utopia de Thomas More,  com a Política de Aristóteles e com a República de Platão. Há outras formas, obviamente. Italo Calvino já nos dizia que os clássicos são inesgotáveis. Portanto, não acredito que deixarão de ser estudados algum dia, ou pelo menos enquanto quisermos considerá-los clássicos, e novas leituras sempre serão possíveis. Tampouco me parece que os alunos tenham medo das obras canônicas.

 

PIXÉ – E o que os estudantes pretendem?

HÉLVIO MORAES – Talvez ocorra o contrário: são as primeiras obras em que a maioria deles pensa ao esboçar as propostas de TCC ou os projetos de Mestrado. Pode ser que se deva ao repertório que muitos deles formam ao longo do curso de Letras, um repertório que até pouco tempo atrás se restringia a autores e textos paradigmáticos da literatura em estudo. Pode ser que se deva a certa sensação de segurança que uma fortuna crítica consolidada sobre determinado autor ou obra parece nos dar. São várias as hipóteses. De todo modo, se é verdade que o estudo dos textos canônicos não foi abandonado, me parece também ser verdade que há uma tendência crescente em investigar a novidade. Nas últimas seleções para o mestrado e doutorado, em comparação com os projetos apresentados em 2012, quando me credenciei no PPGEL/Unemat, é nítido o aumento de interesse pela literatura contemporânea. Sei que é preciso levar em consideração um vigoroso trabalho que está em curso, facilitado inclusive pelo advento das modalidades não presenciais (mas não inteiramente dependente delas), de aproximar autores contemporâneos dos jovens pesquisadores. Em relação à literatura produzida agora em Mato Grosso, também é preciso ter em mente que o estado vive um momento de efervescência cultural, o que atrai a atenção de muitos. Contudo, não acredito que esta seja uma particularidade do programa a que me vinculo. Uma rápida consulta à lista de dissertações e teses defendidas em 2000 e em 2019, por exemplo, em universidades como a Unicamp e a Unesp também comprova este crescente interesse.

 

PIXÉ – Você estudou detidamente a obra de Shakespeare. Seu contato com o cânone deve tê-lo levado às leituras clássicas. No entanto, você tem se ligado à produção contemporânea. Como é a reação ao ler o que foi produzido há 1 ano? É possível discernir o que sobreviverá ao tempo? Essa evidência está no próprio tempo ou depende de injunções com a crítica especializada?

HÉLVIO MORAES – Existe todo um background em relação à leitura do texto canônico, que em certo sentido a predetermina e nos predispõe à admiração e ao reconhecimento da grandeza desse texto; um pré-dito que antecede a leitura propriamente dita. Prosseguimos como que amparados por uma fortuna crítica que se consolidou ao longo da história. A reação ao texto contemporâneo se dá de forma mais espontânea, mais autônoma, sem que seja preciso (em certos casos, possível) recorrer ao amparo – e às amarras – da tradição num primeiro momento. Mas as coisas se invertem quando se trata de traduzir ambas reações em texto. Obviamente, falar sobre o texto canônico, ou analisá-lo, tem suas grandes dificuldades, mas uma coisa é o leitor se articular a partir do que já foi dito, transitar por leituras divergentes e tentar marcar sua posição ao oferecer sua contribuição ao debate já instaurado; outra coisa bem diferente é “aventurar-se” - lembrando que etimologicamente a palavra aventura diz respeito somente às coisas que hão de vir –, dizer algo a partir do nada ou ter essa sensação, já que a referência a um repertório prévio de leitura é inevitável. Eu tenho a impressão de que falar sobre a literatura contemporânea é aceitar correr riscos o tempo todo, porque não creio ser possível ter sempre a certeza da precisão de nosso juízo. Somos provocados pelas leituras imediatas, pelo debate que irrompe no calor das horas, somos dominados pelo escrúpulo de falar sobre um autor que ainda vive, que ainda produz e publica; defendemos de modo mais apaixonado os textos que conquistaram nossa simpatia imediata e não controlamos facilmente nossa intransigência em relação àqueles que num primeiro momento nos desagradam. Enfim, o embate – porque no fim das contas se trata de um embate pela (re)definição de um cânone – parece adquirir matizes bem mais intensos, embora nem sempre estáveis.

Quanto à delicada questão sobre a recente produção literária brasileira (narrativa), o que dela pude ler e minha primeira reação, tenho me interessado cada vez mais pelas obras que orbitam a controversa noção de autoficção. Ao contrário de alguns estudiosos que já acreditam num esgotamento da “fórmula”, tenho a impressão de que é uma tendência que ainda dará bons frutos. Não vejo a autoficção da forma negativa com que Todorov a vê, como uma forma de solipsismo em que o autor evoca seus humores e “se libera de todo constrangimento referencial beneficiando-se assim tanto da suposta independência da ficção quanto do prazer engendrado pela valorização de si”. Pelo contrário, acho que autores como Michel Laub e Cristovão Tezza, justamente pela grande aptidão de fazer subsumir a escrita de si à “independência do ficcional”, podem se liberar (e liberam seus leitores) do constrangimento referencial. Acho  que o memorialismo também se reiventa em autores como Chico Buarque e Antonio Torres.  O realismo mágico, aliado a uma cortante crítica de costumes, são os pontos altos da prosa curta de Eduardo Mahon, principalmente no ainda inédito O Vírus do Ipiranga. E o experimentalismo formal é muito habilmente usado por Divanize Carbonieri em Passagem Estreita e no mais recente Nojo. Mas nem tudo são flores. Ao longo dos últimos dois anos me deixei orientar constantemente pela sugestão de leitura de obras vencedoras dos principais prêmios literários do país. Nesse ponto, com algumas exceções, obviamente (como o grande romance de Felipe Holloway), me inquieta a aridez de algumas narrativas e a ausência de uma estrutura ou articulação razoável dos elementos que as constituem. Não estou aqui propondo um retorno à concepção aristotélica de enredo, algo que há um século Virginia Woolf refutava, indicando várias possibilidades para o arranjo do discurso romanesco. Mas a redundância (como em parte do romance de Fuks, A Resistência) e a fragilidade da estrutura narrativa (como em alguns contos de Paulsen) parecem comprometer essas obras como um todo. Eu me preocupo também com a valorização bastante acentuada de uma prosa que objetiva a denúncia social em moldes realistas, mas que acaba resvalando numa espécie de romantismo que beira o caricato.

Sobre a possibilidade de discernirmos, já em nossa época, aqueles textos que sobreviverão à passagem do tempo, considero-a remota. Podemos até intuir (e torcer!), mas indicar com certeza aqueles textos que se tornarão canônicos, ainda que respaldados pelas injunções de uma crítica especializada, como você coloca, é algo bastante improvável. Para citar um exemplo que me ocorre, recorro a dois romancistas e críticos ingleses, que pude estudar com mais rigor: E. M. Forster e Virginia Woolf. Basta um olhar superficial sobre as resenhas e artigos que escreveram para perceber que não são poucos os autores, seus contemporâneos e de quem eram entusiastas, cujas obras nos são praticamente desconhecidas.

 

PIXÉ – Bloom se celebrizou pela impaciência com os estudos culturais que colocam a literatura como mais um objeto documental socialmente produzido. No Brasil, a mesma postura é a de Perrone-Moises. Na sua opinião, a literatura deve ser destacada como arte, com a autonomia tradicional com a qual foi vista até aqui ou é preciso dessacralizar essa postura crítica?

HÉLVIO MORAES – Sei que este é um campo minado, mas, francamente, não acho que, em linhas (bem) gerais, uma postura necessariamente exclua a outra. Numa de suas últimas entrevistas, Antonio Candido afirma que, a partir de dado momento de sua carreira, deixou de privilegiar determinada abordagem em detrimento de outras. Em suas palavras, seu esforço se concentrava em respeitar a realidade estética da obra e sua ligação com a realidade. Para ele, há obras em que o vínculo social é evidente e solicita uma investigação, enquanto há outras em que tal vínculo é irrisório. Sem embaraço, ele confessa seu ecletismo e deixa claro que faz uso da abordagem que o texto parece lhe sugerir. Particularmente, tento seguir o mestre, e preciso citar aqui um caso pessoal. Assim que comecei a estudar as utopias literárias, no mestrado, em grande parte tomei os textos que compunham o corpus de minha pesquisa como documentos histórica e socialmente produzidos, ainda que este trabalho não se vinculasse à perspectiva dos estudos culturais. Obviamente, teríamos que levar em consideração que o gênero das utopias literárias mantém essa forte ligação com o estado de coisas no qual surge e, por isso, pede essa abordagem. Mas a Utopia também se destaca como exemplo da arte literária humanista da época. Uma abordagem formal, nesse caso, não é meramente complementar, mas indispensável.

Porém, sendo mais específico, pois não se trata apenas de um contraste entre uma apreciação estética e uma abordagem sociológica, mas do esteticismo de Bloom versus um rol de disciplinas que, juntas, questionam essa postura: um dos motivos que levavam Bloom à impaciência era o fato de os estudos culturais conseguirem denunciar o universalismo de sua visão crítica, que oculta, entre tantas outras coisas, as diferenças sociais, os silenciamentos ocorridos na “Escola do Tempo” e a enorme diversidade cultural mundo afora. Já te disse em outra entrevista que o cânone proposto por Harold Bloom é somente o “cânone de Bloom”, tão interessantes e densas quanto possam ser as justificativas que ele oferece para a inclusão de cada autor(a) neste seleto grupo. Queiramos ou não, os estudos culturais conseguiram nos provar o que há de falacioso na postura deste homem ao se arrogar o direito de determinar os autores paradigmáticos de uma “cultura ocidental”. Portanto, acho que essa postura crítica já está mais do que dessacralizada. Por outro lado, são os estudos culturais que precisam rever algumas de suas conquistas, porque, a meu ver, o que está se sacralizando agora é o relativismo ao qual parecem não conseguir escapar, assim como a ideia (que parece dar as coordenadas de alguns prêmios literários da atualidade) de que uma obra vale por expressar a visão de mundo de determinados grupos sociais. É preciso dessacralizar, sempre.

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