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Gabriel García Márquez (1927-2014)
Também conhecido por Gabo, Prêmio Nobel de Literatura, foi um escritor colombiano, considerado um dos mais relevantes do século XX. O trecho supracitado é de seu romance Memórias de minhas putas tristes (2004).

MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES


(Romance -Trecho)

Não havia escapatória. Entrei no quarto com o coração desvairado e vi a menina adormecida, nua e desamparada na enorme cama de aluguel, tal e como sua mãe a tinha parido. Jazia meio de lado, de cara para a porta, iluminada pelo lustre com uma luz intensa que não perdoava detalhe algum. Sentei-me para contemplá-la da beira da cama com um feitiço dos cinco sentidos. Era morena e morna. Tinha sido submetida a um regime de higiene e embelezamento que não descuidou nem os pêlos incipientes de seu púbis. Haviam cacheado seus cabelos e tinha nas unhas das mãos e dos pés um esmalte natural, mas a pele cor de melaço parecia áspera e maltratada. Os seios recém-nascidos ainda pareciam de menino, mas viam-se urgidos por uma energia secreta a ponto de explodir. O melhor de seu corpo eram os pés grandes de passos sigilosos com dedos longos e sensíveis como se fossem de outras mãos. Estava ensopada num suor fosforescente apesar do ventilador, e o calor se tornava insuportável à medida que a noite avançava. Era impossível imaginar como seria a cara lambuzada de cores, a espessa crosta de pó-de-arroz com dois remendos de carmim nas bochechas, as pestanas postiças, as sobrancelhas e pálpebras que pareciam pintadas com tição, e os lábios aumentados com um verniz de chocolate. Mas nem os trapos nem as tinturas eram suficientes para dissimular seu gênio: o nariz altivo, as sobrancelhas encontradas, os lábios intensos. Pensei: Um meigo touro de briga. Às onze fui aos meus assuntos de rotina no banheiro, onde estava sua roupa de pobre dobrada sobre uma cadeira com um esmero de rica: um vestido de algodãozinho barato com borboletas estampadas, umas calcinhas amarelas de chita e umas sandálias de corda trançada. Em cima da roupa havia uma pulseira de miçanga e uma correntinha muito fina com a medalha da Virgem. Na beira da pia, uma bolsinha de mão com um batom, um estojo de ruge, uma chave e umas moedas soltas. Tudo tão barato e envilecido pelo uso que não consegui imaginar ninguém tão pobre como ela. Me despi e dispus as peças de roupa do melhor jeito que pude no cabide para não estropiar a seda da camisa e o linho bem-passado. Urinei na privada sentado e como me ensinou, desde menino, Florina de Dios, para que não molhasse a beira do vaso, e ainda, modéstia à parte, com um jorro imediato e contínuo de potro bravio. Antes de sair cheguei perto do espelho da pia. O cavalo que me olhou do outro lado não estava morto mas lúgubre, e tinha uma papada de Papa, as pálpebras inchadas, e mirradas as crinas que haviam sido minha melena de músico

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