Gabriel Eduardo Ribeiro Crispim
É um estudante de Letras e entusiasta pela leitura e escrita de contos e poesia mórbida. Entre seus objetivos quando escreve, busca criar histórias instigantes que causem verdadeiro interesse nos leitores e os convidem a repensar o modo de vida que as pessoas levam no cotidiano ao estabelecer choque com a ficção. Aspira publicar textos que tenham impacto na vida de quem o leia, seja positivo ou negativo.
Aviso
Eu não sei o que me tornei, mas muitas vezes não respondo mais por mim. Um espírito maligno está se apossando de meu corpo. Assim sendo, deixarei esta última marca de minha ainda existente consciência como forma de livrar outros de meu terrível destino. Largarei esta mensagem pela maldita janela. Aquele afortunado que deparar-se com esta carta, tome meu conselho: afaste-se deste casarão!
O VULTO DO CASARÃO
Se você ainda assim enfiou-se neste maligno covil, então me entristeço em dizer que se encontrou com o mesmo destino cruel que o meu. Já que não temos escapatória, obrigo-me a aceitar este destino, com pesar, mesmo sem entender bem o que nos aconteceu; contudo, nestas minhas últimas palavras, escreverei sobre mim, um homem normal que foi envolvido nesse local de todo anormal. Eu quero registrar o meu fim.
Por outro lado, em uma perspectiva otimista, se, por algum motivo, este bilhete saiu desta casa e você, felizmente, o encontrou sem nunca por os pés neste antro da vileza, eu desejo assim mesmo compartilhar o meu infortúnio e esperar que, desse modo, ninguém nunca mais se aproxime deste casarão.
Não vejo fuga de minha prisão e, devido a isso, encontro, ao lado deste pútrido cadáver que me assombra, forças para registrar a minha história. Mas não estou mais assustado, triste ou agoniado. De fato, passados o desespero e o frenesi que senti há pouco, percebo-me agora em apenas uma apatia e um dissabor os quais nunca antes experimentei. Talvez eu esteja sumindo de mim mesmo cada vez mais. Tomarei proveito deste estado para calmamente expressar o fenômeno inacreditável que me ocorreu.
Havia me mudado para esta pequena cidade há pouco tempo atrás. Ou há muito. Ainda me recordo das primeiras simplórias impressões que tive a respeito dela: é sempre úmida, seus edifícios todos aparentam velhice e descuido e o seu ar é tão límpido e facilmente inalável, livre de fumaça e fuligem, quanto desprovido de cabos elétricos, estes que eu costumava achar sempre acima das cabeças em minha antiga moradia. Aqui a tecnologia existe como hoje existe em qualquer lugar, mas é pouca, é limitada. Eu vinha para um local ignóbil assim em busca de refúgio da loucura das grandes cidades urbanas, onde passara a maior parte da minha vida – com exceção da infância, a qual vivi numa vila do interior ainda mais insignificante que a cidade em que agora me estabeleço. Sequer ouvira falar desse recanto alguma vez antes, mas, ao me ver farto de meu fluxograma cansativo e não recompensador, impulsivamente toquei-me para a primeira cidade desinteressante que encontrara no mapa, com as migalhas que ainda me restavam do que devia ser meu prêmio monetário mensal.
Com minha bagagem curricular trazida por anos de experiência não reconhecida, da qual faziam deveras descaso antes, fui rapidamente cobiçado pelos poucos empregadores da comunidade. Aceitei um trabalho qualquer em um escritório. Aluguei uma casa no bairro mais bonito e menos envelhecido da cidade, não por estética, mas por ser próximo do meu posto de trabalho. Como a cidade é pequena, tinha um só caminho para chegar até o emprego, que passava por certa rua também muito bonita, mas de alguma forma suja em sua natureza mais entranhada. Fato é que sua beleza compromete-se pela podridão em sua atmosfera e a aura repulsiva que se aloja junto a ela. Há, no local, um odor insuportável, resultante da mistura de carniça, álcool e qualquer outra coisa ruim que se tem em seus becos. Estas poderiam ser razões suficientes para uma pessoa se afastar do ambiente, mas existe, além disso, um defeito último nele todo. Há um aspecto característico de abandono, sentimento lúgubre como só a solidão pode ser. A verdade é que as pessoas evitavam passar por aqui, porque é neste antro sórdido que está o chamado “casarão abandonado”. O casarão abandonado, em que me encontro neste momento, escrevendo este testamento.
A princípio, a despeito dos traços aversivos relacionados a esta rua, não havia nada muito incomum acontecendo aqui, nesta casa em questão, que rechaçasse os passantes. Ninguém ouvia vozes vindas dela ou algo assim. O maior temor sentido era por aqui ter morrido, pouco antes de eu me mudar para a cidade, o antigo morador do imóvel. Isto dava aos transeuntes uma sensação funérea, um mau presságio. As pessoas simples deste lugar simples acreditavam que trazia azar aproximar-se de onde alguém morreu, era assim o meu pensamento sobre a questão. Eu achava isso tolo, até o destino pregar comigo a terrível peça.
Descobri que havia, sim, algo de extraordinário relacionado a este casarão, uma coisa que só eu conhecia. Toda vez que me via forçado a passar em frente a esta rua, a pé e solitário, a caminho do serviço, via um vulto numa das janelas do segundo andar. Assustado, diminuía os passos à medida que acelerava os batimentos cardíacos. Em seguida, percebia a figura adentrando a casa, como se fugisse de meu olhar indiscreto. Não sabia o porquê, mas aquilo me afligia mais do que seria natural. Era um espanto aquele encontro inesperado com um tipo indistinto o qual interrompia meu trajeto que, em outras condições, seria tranquilo. Não era somente um susto, era uma sonda; os olhos secretos daquela coisa que devia ser uma pessoa filtravam-me o interior de maneira intensa e sem acanhamento, para então deixar-me, em silêncio. Por aquele ser estranho sempre se esconder, nunca havia chegado a vê-lo, porém, como mais do que um vulto, uma sombra indistinguível. Isso acontecia desde que começara a passar por esta rua… não me lembro de há quanto tempo com exatidão.
De início, buscando a prevalência da razão sobre a emoção, pensei ser ele apenas um novo comprador do casarão, um bisbilhoteiro qualquer, e, com essa hipótese em mente, não me preocupei muito mais com o evento, podendo enfim acalmar-me. Mas tal acontecimento era recorrente e me perturbava de forma cíclica, dia após dia, a ponto de eu perder minha noção temporal. Parecia-me que acontecia há meses, mas para externos poderiam ser, de fato, apenas dias. Talvez um ou dois só. Mas esses poucos dias atravessando a rua do casarão abandonado perturbaram-me como vários dias maçantes na cidade grande jamais perturbariam.
Não obstante, a irritação maior vinha depois. Após o vulto fugir para o interior do cômodo, eu retomava meu ritmo habitual e seguia meu caminho. Porém, ao passar em frente à porta do casarão, percebia a maçaneta girando. Em conjunto, todos os meus sentidos focavam naquele movimento giratório; via, ouvia e sentia como se algo estivesse querendo sair de lá. Algo oculto aos meus olhos, mas perceptível aos ouvidos, fétido ao nariz e temeroso ao resto. Algo ruim. Apressava novamente os passos, desejando distância daquele lar de uma desconhecida e inimaginável entidade. No entanto, por algum motivo, toda vez que eu ultrapassava o casarão, me sentia compelido a olhar de volta para ele. E lá estava novamente a coisa, observando-me outra vez do segundo andar. Um terror adicional existia na segunda face daquilo, pois, nesta, a boca escancarava-se em um grito que era inaudível, mas totalmente arrepiante. A este ponto, somente me lembro de correr. À noite, quando retornava por aquele caminho, isolava-me em quaisquer pensamentos fúteis que pudesse, forçando-me a ignorar a presença do casarão.
O ciclo durou por muito tempo. Era como um ritual já previsível, mas nunca esperado e sempre amedrontador. Os dias se arrastavam comigo esperando pelo fim de semana, quando não precisaria ir ao trabalho e, por feliz consequência, não precisaria passar por aquela rua perturbadora. Certa vez, ao cogitar que a maldição não podia ser castigo só meu, mencionei aos meus colegas de trabalho este estranho casarão. De início, pedi apenas informações sobre o local, de forma que talvez manifestassem semelhante irritação em relação a ele, caso também enfrentassem a mesma assolação que para mim era fato diário.
Fora-me dito pouco mais do que eu já sabia. Descobri que o antigo dono do imóvel amaldiçoado, semanas antes de sua morte, agia de forma paranoica e falava sobre estar sendo assombrado por algum tipo de espírito, sobre estar sendo vigiado. Por medo ou por descaso, as pessoas não lhe davam ouvidos, e o homem, portanto, se resignou e parou de interagir socialmente por completo. O comportamento estranho, no entanto, persistiu; esgueirava-se pelos cantos como se fosse vítima de uma perseguição maligna. Após algumas semanas de tormento, ele, por fim, trancou-se no casarão e se matou em seu quarto.
Assustado, perguntei aos meus colegas se tinham fotos do homem. Ao vê-las, senti estranheza. Não parecia com ninguém que eu conhecesse – e naquele momento não sabia ainda por quê, mas eu esperava que parecesse –, no entanto trazia uma desconcertante familiaridade simultaneamente, trazia certa nostalgia que, devo confessar, não era boa. Porém, não era ninguém que eu conhecesse, realmente.
Após um momento isolado de reflexão, mais tarde, entendi que naquele homem da foto eu procurava algo que me lembrasse do vulto, da coisa no casarão, e era esse o motivo da minha decepção ao não reconhecer a imagem da pessoa que, tão contraditoriamente, parecia-me conhecida. Insatisfeito, investi em uma última tentativa de obter mais informações sobre a história toda e, perguntando sobre ela a qualquer um com quem me deparasse pelo caminho, tomei conhecimento de um fato assombroso sobre aquele casarão e aquele homem, fato o qual viria a me tirar o sono, o qual acabou por me distanciar mais da satisfação buscada na investigação, conforme me aproximou do arrependimento pela minha obstinada curiosidade. Pressenti que o futuro reservava-me qualquer desfecho horripilante. Mas, ainda assim, minha ânsia pelo entendimento tomava-me o senso cada vez mais, tirava-me a razão e deixava-me apenas a vontade de ir adiante, mergulhar-me.
No dia seguinte, fui comandado por uma força sobrenatural a ir em direção ao fim da estrada que até então vinha seguindo, a passar pelo que eu sabia ser a minha última vez pela rua do casarão abandonado e assim finalizar o meu tormento, fosse como fosse. Aquela manhã cinzenta e neblinada foi diferente de todas as outras. Eu segui pelo caminho habitual em direção ao final desta estranha história, porém, o diferencial deste dia foi a inércia. Foi com ela que me deparei na janela.
A coisa não se moveu. Não se escondeu no quarto ao ver-me, como era o seu costume. Dessa vez, ficou parada à minha espera. À medida que, inevitavelmente, como que sugados por um sentimento incontrolável de curiosidade, meus pés me empurravam para frente, a luz do sol caia sobre a janela daquele quarto, revelando gradualmente e finalmente a face da misteriosa figura. Seus olhos brilhantes agora pareciam mais reconhecíveis, próximos de uma coisa mais humana, porém ainda a uma distância desconfortável do que faz uma pessoa ser uma pessoa. A luz que tocava aqueles dois círculos de familiaridade inexplicável redirecionava-se a mim de forma fixa e contínua. Aquilo que se tornou um homem de cabelos grisalhos e bagunçados fitava-me ereto e estático, como eu fiquei logo em seguida.
Eu parei. Qualquer que fosse a parte de minha mente que antes permitia movimentos voluntários, agora cessava o seu funcionamento, entregando-me a um deprimente tremelique. Naquele momento, eu parei como se estivesse morto, desaparecido, e só me sobrasse o corpo a balançar. Mas aqueles olhos persistiam no flerte, convidando-me a entrar enquanto saíam de vista, ao enfim adentrarem o recinto. Nada pude fazer senão segui-los.
Adentrei de uma vez o casarão pela porta que talvez nunca estivesse trancada, que talvez não fosse aberta pela criatura moradora, não por incapacidade, mas para que me chamassem a atenção seus movimentos estranhos e me fizessem ir até lá eu mesmo. Pois foi exatamente isso que aconteceu. No interior, não percebendo mais o inconspícuo ser que me guiara, meus olhos buscaram os degraus da escadaria que levariam as pernas até o segundo andar, onde esperavam encontrar o seu condutor novamente. Encontrando-os, subiram-nos de imediato, mas pararam de face a outra porta, ainda mais sombria e misteriosa que a de entrada. Era a do cômodo do segundo andar, de onde fui observado nos dias anteriores e que, como vim a descobrir mais cedo – a descoberta assombrosa que me tirou o sono –, era a do quarto o qual servia de dormitório para o antigo morador. Eu sabia, jurava por tudo, que neste mesmo momento estava nele o falecido. Estava nele o vulto.
Os instintos enganaram-me, porém, uma vez que, ao entrar, não encontrei à janela ninguém, como esperava encontrar. Eu estava abandonado no casarão. Decidi ir à janela e procurar algo lá fora, quando vi um homem, algum passante qualquer que vinha da mesma rota da qual vim; subitamente, retomei algum juízo e, lembrando-me que não devia estar ali, recuei de volta para dentro. Em seguida, dirigi-me correndo à saída com o intento de não ser acusado de arrombo. E é assim que acaba a minha história passada, chocando-se com meu ponto atual, pois que não consegui abrir a porta e vi-me preso neste inferno indescritível que é o casarão, no qual estou há não sei quanto tempo. Ainda naquele dia, tornei a correr para o quarto do segundo andar e olhar uma vez mais pela janela, quando deparei-me com a visão mais aterrorizante que já tive: era novamente o homem passante, agora vestindo as mesmas roupas que eu vestia, tendo a mesmo aparência que eu tinha, sendo tudo o que eu era, com exceção dos olhos brilhantes e perturbadores que reconheci da foto que foi-me tão familiar anteriormente. Os olhos do vulto. Plenamente espantado, abri a boca, mas não consegui gritar. Foi então que notei os cadáveres ao meu lado, empilhados em incontáveis corpos sem face.