Gabriel de Mattos
É contista, romancista, arquiteto e professor universitário, enquanto o dia tiver apenas 24 horas. Seu livro A Geringonça, fez parte do Programa Nacional de Bibliotecas de Escola (MEC/2007), em 2011 ganhou o Concurso Internacional de Contos de Ficção Científica Vicente Cardoso, com Canção. Recém doutorado em Estudos de Cultura Contemporânea, vai retomando o mundaréu de coisas que gosta de fazer.
GARIMPEIRAMA
(O Mundo de Costas para o Cruzeiro do Sul)
Olegário Mundin começava a perder o pouco de calma que habitualmente o acompanhava.
- Como que eu posso sair só depois de pagar, se só vou conseguir dinheiro para pagar se sair?
Arrematou com um palavrão e encarou a enfermeira.
- O senhor não tem nem plano de saúde?
- Dona, nem plano de vida eu tenho. O que aparecer eu aproveito. Aliás, a boneca tem programa pra hoje à noite?
- Senhor Olegário!
- É isso aí, meu bem, se você não gostasse de aventura não teria arrebentado aqui no meio do garimpo.
Ela se retirou, dizendo que ia chamar um guarda. Olegário pensou que um guarda só poderia mesmo expulsá-lo dali, justamente o que não queriam deixá-lo fazer por livre e expontânea vontade. De qualquer forma, achou melhor vestir-se e escapar pela janela. Por sorte o hospital tinha lavado seus trapos de garimpeiro. Ele ficou apenas alguns segundos em dúvida sobre se levava ou não o pijama de doente. Melhor levar: no mínimo estaria fazendo campanha para o Doutor Raimundo Schutz, que deveria sair para prefeito nas próximas eleições.
- E pra consolidar minhas boas intenções juro que qualquer dia desses tiro um título de eleitor, e até passo procuração pro Doutor Raimundo Schutz vot5ar por mim! - Deu uma gargalhada.
Ao tocar o chão após o pulo da janela, doeu todo o interior de Olegário Mundin.
- Eita, que o conserto ficou pela metade. Mas deixa de ser ingrato, Olegário meu velho, por esse preço de nenhum cruzeiro era o melhor que poderias conseguir.
Ia pelo meio da tarde naquela cidade do nortão de Mato Grosso. Para os desavisados poderia parecer meia-cidade, pelo tanto que ainda precisava ser feito para enquadrá-la na definição de dicionário.
Mas mesmo assim era grande para Olegário Mundin, que na verdade verdadeira não gostava nem de cidades, nem de meias-cidades, que diria então cidade e meia. Lembrava-se com terror da aventura que fora uma viagem à São Paulo, onde venderia um diamante do tamanho de um ovo de codorna: Não chegou a atravessar rua do centro porque “não prestava cortar procissão”. Essa e outras anedotas aconteceram de fato com Olegário, tanto que nem ficou pra gastar um pouco do dinheiro arrecadado com a venda. Não adiantou o primo Ludgério acenar com noites de safadeza alucinante, com aquelas mocetonas da cidade, como Mundin nunca vira igual.
- Qual o quê, Primo Ludgério: capivara fora do mato, caçador atira fácil!
Ao que o primo, repudiando os interiores após casamento com paulistana italiana, de raviolis e canelonis:
- Pois eu, compadre Mundin, acho que quem faz carreira no mato é veado!
O compadre Mundin sorriu da lembrança. Não pela cidade, mas pelo tempo que garimpar dava dinheiro; tempo que dava para viajar bem pra longe, só pra tomar um fôlego antes de voltar pra labuta da bateia.
No fundo ele gostava do mato, daquela vida sem detalhes de estudo, sem muita gente de lado. Isso já fazia tempo que não encontrava. Agora os garimpos eram empresas, e ele tinha que dividir o que achava com o dono do garimpo. Dono? Era estranho. Como alguém podia ser dono do ouro que estava nos rios ou embaixo da terra? Como alguém que não labutou pra separar a terra do ouro, o barro do ouro, podia ser dono?
Mundo mudado, né, Mundin?
Pena que saíra fugido do hospital do Doutor Raimundo Schutz; agora não sabia onde encontrar o Glório, seu companheiro de garimpo, que o havia levado para se tratar da recaída de maleita. Bom e velho Glório, companheiro como não se achava mais nos garimpos. Ambos concordavam que era absurda aquela coisa de hoje o garimpeiro ser empregado de uma firma de mineração. Glório, que era estudado, dizia que mesmo antes os garimpeiros acabavam trabalhando para quem comprava o ouro, estavam dependentes dos compradores, que pagavam o que quizessem.
- Mas mesmo assim era mais gostoso, Glório. A gente não tinha que olhar um patrão como olha hoje. Isso dói na nossa alma de aventureiro.
Papos nos bordéis de garimpo, a cara cheia, gastando todo o dinheiro arrecadado em semanas de briga com a bateia. Aliás, era onde deveria procurar o amigo, na Boate Star Light, ali na beira do rio. Pelos seus cálculos, Glório ainda deveria ter uma grana no bolso, então só poderia estar na zona.
- Sou um bordelista, amigo Mundin. Quero é morrer durante uma noitada daquelas, na cama ou na mesa. Morro feliz e ainda deixo a conta pros amigos pagarem!
Grande Glório! Era cedo para a Boate Star Light estar funcionando, então Mundin decidiu andar pela cidade, fazer hora até a noite cair. Sentou-se num banco de praça e passeou a vista pelas redondezas: afora um ou outro armazém, casas pequenas, uma pensão e as lojas com cartazes escritos à mão Compra-se Ouro.
Garimpeirama...
Nunca esquecera a história contada pelo Glório. No tempo que o outro tinha família, dinheiro, estudo, lera num livro de História de Mato Grosso, de Rubens de Mendonça (“Lê pra burro, sabido pra xuxu!”, diziam do autor) esse caso da República dos Garimpeiros.
Pelo que Mundin entendeu, ele que não sabia ler direito, a coisa se passou por causa de um desentendimento entre dois grupos de garimpeiros, um deles liderado por um tal Morbeck, o outro por um certo Carvalhinho. Foi uma luta sangrenta no reino da bateia, daquelas que o governo teve medo de se meter no meio. E era essa parte que Olegário Mundin gostava, que pedia pro Glório repetir, uma, duas, três vezes. O governo passava longe, só entrou de sola quando a carnificina chegou a feder até lá na capital; dizem que o governo federal ia mandar tropas. Aí Mundin imaginava e ia embora:
- Imagina, Glório, o governo não consegue entrar no meio. Aí os garimpeiros falam: Aqui o governo é a gente, aqui é só garimpeiro que vai entrar. E aí essa tal da Garimpeirama ia virar um país! Já imaginou, Glório: Garimpeirama, O País dos Garimpeiros! Dinheiro não ia faltar, era só a gente tirar ouro. As cidades iam ter só bordéis e boates, uns hotéis e restaurantes chiques para a gente gastar o que ganhasse na bateia. Só isso, Glório, nada de coletoria, de inspetoria, dessas besteiras; ia ser uma terra de gente macho!
O Glório não falava nada, só pitava aquele cigarro de palha que fedia bastante, mas pelo menos espantava os mosquitos.
Numa terra como a Garimpeirama, um Doutor Raimundo Schutz não iria se candidatar a prefeito. Só se candidata porque é casado com uma filha do dono da mineradora que controla os garimpos da região. Gumercindo Feijó, o dono da Boate Star Light, contara a história do humilde médico cuja única façanha de destaque fora conquistar a Verinha Oeiras, filha de Sigismundo Oeiras, proprietário de vastidões de terra garimpável. Ele chegara meio desinfluído àquela terra, mas a fidelidade da Verinha ao pai, e seu espírito de aventura, acabaram contagiando o doutor, que construíra o hospital com o respaldo financeiro do sogro e estava se tornando seu herdeiro político.
- Escreve isso, Mundin, nosso próximo prefeito chama-se Doutor Raimundo Schutz... Oeiras! - Brincava o bordeleiro Feijó.
A noite caíra enquanto Mundin passeava na cabeça por sua Garimpeirama. Ele ainda esperava achá-la, concreta, uma terra sem dono, para ser explorada por ele e sua bateia.
A Boate Star Light ficava numa construção de madeira à beira do rio. Tinha um espaço coberto sem paredes onde se podia beber no mais arejado (afinal a região era muito quente). Ao lado desse espaço ficava o famoso fornão, lugar fechado, de pouca luz e muito calor, onde se podia dançar colado, fumar o quanto quisesse e ver strip-teases. Ao fundo, num corpo separado da boate, os vários quartos para as horas de amor com as meninas. Essa era a única parte da Star Light feita de alvenaria, além dos banheiros; Gumercindo Feijó achava que divisórias de madeira não dariam intimidade para os casais. Outra coisa surpreendente nessa parte era a limpeza, o que fazia o bordeleiro respeitado pelos garimpeiros e até pelo povo da cidade.
Aquela hora ainda não começara o movimento, Mundin não viu o Glório por ali, mas encontrou Gumercindo Feijó atrás do balcão. O garimpeiro sentou-se para conversar, enquanto uma das meninas começava a passar a mão nele.
- Só vou prosear um pouco... - Desculpou-se, sabendo que sem dinheiro não conseguiria muita coisa com aquelas profissionais.
- Pode ir, Flor. - Disse Gumercindo Feijó; ele mesmo instruía as meninas a nunca deixar um cliente sozinho no fornão - E aí, Olegário, pronto pra outra maleita?
- Vira essa boca pra lá! - Ele bateu na madeira do balcão, notando que o proprietário estava de bom humor.
- Olha a novidade que eu vou lançar aqui, - Feijó exibia umas ensebadas cartelas de bingo com o carimbo vermelho da Star Light por cima; mesmo assim dava para notar que tinham sido usadas na quermesse da igreja, um mês atrás - é a última novidade na capital. Cada noite eu separo uma menina especial pra fazer o strip-tease, depois a gente faz um bingo e quem ganhar vai pro quarto com ela.
- E qual a vantagem?
- Ora, Mundin, eu vendo baratinho a cartela, mas como tem muita cartela ganho mais que se fosse só alugar o quarto. É o sistema industrial, o dinheiro de massa. E depois tem o lance do jogo, vocês garimpeiros gostam de jogo, e este jogo tem um prêmio especial. - Sorriu baboso Gumercindo Feijó.
- Você faz de tudo pra tirar nosso dinheiro, seu safado! - Riu Olegário Mundin, já pensando em perguntar quanto era a cartela. Talvez conseguisse um dinheiro emprestado do Glório para ver se ganhava uma menina, afinal estava numa precisão imensa. Por isso é que cantara a enfermeira: apesar de feia de rosto, tinha um bundão respeitável.
- Olha, Mundin, isto daqui vai crescer, e eu espero melhorar de vida. Estou pensando em trazer o jogo do bicho pra cá, organizar a coisa. Uma cidade precisa ter de tudo em matéria de diversão.
- Aliás, Gumercindo Feijó, porque você não se candidata a prefeito? Olha que com seu trânsito junto às putas e aos garimpeiros pode fazer frente até ao Doutor Raimundo Schutz.
- Será?... - Os olhos do bordeleiro brilharam - Você acha mesmo, Mundin?
- Tente, homem, você é um sujeito organizado, dinâmico, tem idéias, sabe do que o povo gosta. Vamos brigar com esse povo da mineradora.
- Ah, não sei... - Apesar de estar em dúvida, Feijó sorria para dentro. Pegou uma garrafa de pinga e dois copos - Toma uma por conta da casa. Mas me diz aí, como é essa idéia de prefeitura?
- Ora, você me falou que o Sigismundo Oeiras quer lançar o genro pra prefeito, mas nós no fundo não gostamos dele, ou deles dois. Olha que queriam me prender no hospital da mineradora, porque eu estava sem grana pra pagar. Se você arruma apoio de mais um povo que mexe com comércio... pode fazer um estrago!
- Mas o povo dos Oeiras tem muito dinheiro.
- E sabe do que mais? O Glório me contou que há algum tempo atrás, nós os garimpeiros quase fizemos uma cidade só nossa aqui em Mato Grosso. Era a Garimpeirama. Olha que se você ganha, a gente te apóia pra mudar o nome do município pra esse de Garimpeirama, bonito à bessa.
O bordeleiro estava animado, até encheu o copo do garimpeiro outra vez. Mundin sentia a cachaça queimar na barriga. Ou estava ficando velho ou o tratamento no hospital do Doutor Raimundo Schutz não valeu de nada.
- Sei lá, Mundin, - Feijó estava com os olhos vidrados - o que eu quero mesmo é ser empresário. Eu comecei aqui com a Star Light, agora vou ver se implanto o jogo do bicho. Política? Não sei... - E mais confidente - Sabe de uma coisa que eu queria ter? Sabe o que é? Um cartório. Onde eu fosse o tabelião. E esse cartório ia ter uma novidade: ia funcionar também de noite. E aqui na boate! Se você soubesse como bêbado fica corajoso pra fazer negócio... E eu aqui só fazendo contrato, registrando compra e venda, carimbando declaração. Mundin, ia ser uma fábrica de dinheiro!
O garimpeiro bebeu outro trago, já pensava numa grande campanha entre o bordeleiro e o médico, com a cidade em pé de guerra. As putas na rua agitando pelo patrão, talvez Feijó fizesse noites grátis para os eleitores, era voto certo. Depois a garimpeirada brigando com a mineradora, fazendo corpo-mole, diminuindo o lucro dos Oeiras. Comícios na praça, com umas boas brigas pra dar gosto. E depois: Garimpeirama!
- Sabe, Mundin, - Feijó enchia mais uma vez o copo do garimpeiro - você me deu uma boa idéia. Olha, eu vou falar com o Sigismundo Oeiras, vou conversar com ele pra me colocar de vice na chapa do Doutor Raimundo Schutz.
- Você... vice?! Mas, Feijó...
- É isso mesmo. Sabe, um tempo atrás uma das meninas novas teve um problema e eu a levei escondida pro hospital. O Doutor Raimundo Schutz mesmo atendeu; é que eu pago mais caro porque é escondido. Vai que ele gostou da mocinha, e eu deixo ela separada pra ele. Está enrabichado, Mundin! Acho até que vou falar com ele primeiro, e só depois com o Sigismundo...
Olegário Mundin alegou indisposição, tomou o último trago de cachaça e deixou Gumercindo Feijó abrindo as portas do seu cartório. Fora do fornão era uma noite estrelada, os primeiros fregueses já estavam bolinando as meninas. Ele mesmo teve que espantar duas delas, fiéis aos ensinamentos do patrão.
- Vão embora, estou doente, não aguento nada. E ainda passo doença pra vocês!
E esse Glório que não aparece. Precisava do amigo para planejar o caminho a seguir. Não poderia mais voltar para o garimpo dos Oeiras, descontariam das suas retiradas o tempo no hospital. Davam com uma mão e tiravam com a outra, desgraçados!
A barriga voltou a doer, ele foi para a beira do rio, queria escapar da música, das luzes, da alegria da boate. Ficava taciturno quando decidia que precisava sair de um lugar que já não dava espaço para um desgarrado como ele. Era aquele momento em que se encaminhava sempre para o norte, “de costas para o Cruzeiro do Sul”, como dizia o Glório.
Era cada vez mais difícil tomar aquela decisão, e cada vez ia ficando mais solitário. Achava que em alguma outra vida devia ter sido bandeirante, que era uma festa quando saíam de São Paulo em direção ao interior. Agora não mais festas, não mais grupos de jovens esperançosos, mas velhos fugindo, sem querer olhar para trás.
Imaginava até que seu último companheiro, o Glório, iria um dia abandoná-lo, voltar para sua família estabelecida, ficar nas costas dos parentes. Pelo que ele contava, era gente disposta a pagá-lo para não aparecer. Glório disse que um dia ia escrever um baita de um livro, contando a história da vida dele.
- Tudo, Glório?
- Tudo, Mundin. Já me acham louco mesmo, ninguém vai levar a sério. Os loucos tem regalias, Mundin.
Mas que pelo menos Glório lhe desse um dinheirinho para comprar uma bateia; e uns mantimentos, que o ajudassem a sumir por esse nortão do Brasil, atrás de algumas pepitas.
Para vender, gastar o dinheiro com putas e jogo, e depois voltar...
Algumas vezes (poucas, ele tinha medo de pensar nisso), mas algumas vezes ele se imaginava chegando a um ponto em que encontrasse o mar à sua frente, enquanto ainda podia ouvir o som de uma cidade às suas costas, uma cidade sob o Cruzeiro do Sul... às suas costas.
Seria o fim, não mais nortes para seguir, não mais grotas como era aquela mesma povoação onde estava agora. Nem mais uma povoação: uma cidade com hospital, prefeitura, cartório...
Afastou a imagem da cabeça, instintivamente olhou para o céu, procurando o Cruzeiro do Sul. Viu a constelação refletida nas águas calmas do rio; estava tonto, mas sabia qual a direção a seguir. Só precisava de mantimentos; e uma bateia, cada vez mais difícil de encontrar nas casa de garimpo, cheias de máquinas, bombas, filtros.
Nem que fizesse a bateia ele mesmo, de barro, com as próprias mãos! Iria é sumir dali. Só uns mantimentos, um cantil de água, talvez um facão.
E o Glório que não chega!...