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Gabriel de Mattos
É doutorando em Sociologia (FFLCH-USP), graduando em Filosofia. Escreve sobre arte contemporânea, arte urbana e matemática. Trabalha com pesquisa de mercado e opinião

OESTE

Fechou a porta. Respirou fundo. Falhou. Não sentiu o coração desacelerar. 
Também não era pra menos!
Olhou a paisagem pela janela do escritório. Do SEU escritório, ali no meio da Amazônia. Na presidência do Novo Paraiso Golf Club.
Que ainda nem estava inaugurado.
E do jeito que hoje, o dia da inauguração, estava indo... Poderia nem ser inaugurado.
Porque fora aceitar esse cargo? Essa honraria, como dizia Maria Lelena, sua esposa. Ah, claro: Maria Lelena, que finalmente era primeira-dama! Afora isso, porque os dois grupos?...
- Sêu Maurélio?... – na porta entreaberta, Clarice, organizadora da limpeza, cozinheira-chefe (como chef tinha um outro nordestino com nome francês), executiva da organização física (título pomposo, salário baixo), com o marido a reboque.
- Dona Clarice...
- A gente sabe, Sêu Maurélio. A gente só queria... também proteger, blindar o Gorfeclube.
- Mas daqui a pouco...
- É, a gente sabe. O Pastor Carlos vem aí. E aí... sabe, aí não ia dar mais...
Respire, Maurélio. respire, Presidente...
- É que é esta hora matutina que a gente precisava, presidente, só uma pequena cerimônia. – o marido, de bigodinho (de bigodinho!), sempre sorridente, e sem título pomposo - Sabíamos que o senhor entenderia...
- Agenor, eu precisava saber antes...
- Já está feito, presidente. É só uma proteção. Não tem mais nada lá, os tambores, as flores...
- Tudo bem, gente, tudo bem. Fica aqui entre nós, só.
- E entre nossos protetores, Sêu Maurélio.
- A gente até trouxe um presente, senhor presidente. Um colarzinho de Xangô. Sabemos que o senhor tem que enfrentar dificuldades. Foi um como esse que me ajudou no garimpo, até chegar em Novo Paraiso... – Agenor estende um pacotinho. – Pode usar escondido mesmo. A gente entende.
Ele respira, guarda o pacote no bolso, depois de apertá-lo com um suspiro fundo e... vá lá, pedir proteção. 
Maria Lelena sempre falava desses... como dizia? Sincretismos, acho que é isso. 
Ela podia ter essa atitude meio distante, era funcionária-pública-concursada, não admitia questionamento. Ele, Maurélio, é que trabalhava, enfrentando a iniciativa-privada, expert em jogo de cintura. Ela fazia treinamento, especializações. Ele saltava de cargo em cargo, da Colonizadora para a Rede de Comércio que se instalava no Nortão de Mato Grosso, depois de volta a Colonizadora e dali para a Distribuidora de Bebidas (filial, não franquia, como ele pensava); agora na Transportadora do primo-rico, com perspectiva (será?) de sociedade. 
- Oi, senhor Maurélio. A gente atrasou um pouco, mas já vamos montar o palco.
Precisava trancar a porta, a assessora do Pastor Carlos. Tarciana?... Marciana?...
- Ah, tudo bem, podem ocupar... inaugurar o Salão Novos Bandeirantes! 
- Obrigado, senhor Maurélio. Louvado seja. Mas... nem tudo está bem. A Bispa não pôde vir. Emergência de última hora. O que foi até melhor. Os voos foram cancelados hoje. Só deu para aterrizar o avião da atriz e do conde...
- Ah, eu soube. Neblina e instabilidade. E nosso aeroporto não está nem pronto ainda. Se precisarem de qualquer coisa, falem com nossa gerente-de-eventos (outro título, mesmo salário) Dona Clarice.
- Obrigado, senhor Maurélio, mas já está tudo planejado: trouxemos o palco pré-fabricado, o som da igreja e, além do culto, vamos ter uma palestra de motivação, uma palestra-show com um dos nossos irmãos da Central. – ela se aproxima, entre insegura e sorridente – Pastor Carlos enviou para o senhor, com as bençãos do culto de domingo passado. – entrega um livro colorido, com título em letras grandes – E também reiterou que continua esperando o senhor em um de nossos cultos.
- Obrigado, dona... – fala um nome intermediário entre os que se lembra – esta ovelha ainda vai se desapegar de algumas coisas antes de voltar aos cultos.
De volta à solidão no escritório-da-presidência. Guarda o livro numa das gavetas da escrivaninha (doação da Móveis Paraíso, requinte-e-bom-gosto-ao-gosto-do-cliente); em outra está a Bíblia católica de capa dura e sobrecapa de papel cuchê, que ganhou ontem de Frei Inácio, depois da “conferência de paz”. 
Seria bom o Pastor Carlos não atrasar na cerimônia do almoço; logo no início da tarde o pessoal da Pastoral católica iria vir montar o altar no outro salão, o Pioneiros do Futuro. E com o Arcebispo em pessoa. 
Foram duas semanas de negociações, com o presidente Maurélio tentando compor os dois campos. O Arcebispo e o Pastor Carlos rechaçaram o culto ecumênico sugerido pelo presidente (ideia de Maria Lelena, mais militante que religiosa). Ainda bem que ele conseguira barrar um plebiscito sobre o culto único, que poderia rachar, e potencialmente destruir, o nem inaugurado Novo Paraiso Golf Club. Acabou que ficaram duas cerimônias, cada uma inaugurando um dos salões nobres. A inauguração oficial seria à noite, grandona e com festa de arromba, algo eminentemente Político, com as altas autoridades locais, mais deputados (estaduais e federais) e talvez um senador. 
E os religiosos em mesas grandes, em lados opostos do Grande Salão. Além do conde italiano e da ex-musa da pornochanchada...
E ainda teve a benção do pessoal de Dona Clarice, ao raiar do dia! Batuques, danças, fumaça e folhas de erva-santa. Agora era esperar que a Pastoral não decida adiantar os preparativos.
Sentou-se na mesa de presidente, na cadeira de presidente (melhor que ser Secretário da Associação Comercial, detestava fazer e revisar atas!)... Telefone!
- Presidente Maurélio, Irmã Adelaide. Só para avisar que o Arcebispo não vai poder vir. O aeroporto da capital fechou, e o nosso só aceitou um pouso hoje, daquela vedete de cinema...
Maurélio suspirou. E ainda podia chover hoje de noite.
Abriu a gaveta do centro da mesa, tirou um livrinho já meio torto de usado, abriu numa página qualquer.
Nessas horas só o bom e velho Chico Xavier! (Obrigado, Maria Lelena...)

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