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Gabriel de Mattos
É arquiteto, professor universitário, autor de O Primeiro Filho e outras Narrativas, além de Volcanya Blues (com Ricardo Leite, o Ric Milk) entre outros, vem contando aqui na Pixé as lendas da imaginária Novo Paraíso do Norte.

ARQUIPÉLAGO DOS TEMPOS

Quando vieram para Novo Paraiso do Norte, na já velha Variant dele (principal fatia do que lhe coubera do parco espólio do pai), ela rabiscava opiniões nos artigos e desenhava elaborados bigodes dalinianos nos rostos masculinos e femininos do último número da revista Amiga (comprado no derradeiro posto da estrada asfaltada). Os dois não deixavam muita coisa para trás. Na verdade, nem tinham muita coisa mesmo. Nem muitos amigos heroicos (porque a ditadura agonizava e já estavam pendurados em empregos abençoados pela nova, mas não muito, elite) nem muitos contatos profissionais, já murchos desde os estágios. Pouco antes do casamento, onde até fora difícil arrumar convidados, ela trouxera uma Manchete das últimas (aquele império também claudicava) onde se falava da nova frente de exploração do norte de Mato Grosso. Engenheiro e contabilista sem laços no sul, embarcaram com apenas algumas respostas de cartas vagas para o norte do centro oeste.
O sul era careta, iam em direção ao místico Eldorado, se a Variant não fundisse o motor, ou se não conseguisse secar o distribuidor. Nada de apartamento pequeno em cidade grande (o que conheciam de sobra): oportunidades iriam surgir na cidade pequena onde teriam uma casa grande, onde pudessem plantar amigos e filhos (como cantava Elis Regina).
*
- Querida, cheguei! – A saudação era lembrança de um programa da tevê Tupi. Lembrança mesmo, ainda não tinham a antena parabólica para fisgar uma onda colorida no céu da Amazônia. 
- E aí, conseguiu?
Ele deixa a mochila na mesa de fórmica. A barba não é ideológica, serve mais para enganar os grandes borrachudos que infestam a floresta que circunda a cidade. Passa a mão na testa, embaralha os cabelos, coça a testa.
- Fala logo, Rodrigo!
Ele sorri.
- Começo na segunda! Tem projetos sem nada de estrutura marcada.
Ela o abraça: - Que bom, querido! Voltar a trabalhar no que você sabe bem melhor do que ficar fazendo levantamento topográfico no meio do mato. Não ficaram chateados? Sair assim da empresa que é praticamente dona da cidade...
- Na verdade, bem... a construtora é deles também. De um cara da família.
- Menos mal. A  gente não pode brigar mesmo. – ela se senta na cadeira vermelha de plástico. – Falando nisso, conversei com minha chefe... sabe aquela galeria que vão abrir perto da rodoviária? Bem, eu recebo a correspondência, além de fazer a contabilidade, e vi que eles recebem uns jornais e revistas pelo correio, pouca coisa, e acaba dando briga na hora do pessoal ler. Eu mesma só leio quando chegou dois números depois. Bem eu falei que posso trabalhar meio expediente e, conversei com um distribuidor de São Paulo...  estou pensando em abrir uma banca de revistas nessa galeria, já tem um bom movimento por ali.
- Uau, banca Magnólia! Sempre achei que estava casando com uma empresária.
*
- Está pronta, Doutor Rodrigo, pelo menos coberta. Semana que vem a gente continua.
Ele olha a casa (sua casa!), no meio do terreno largo. Ainda está sem piso e só com as paredes rebocadas. Mas já tem energia elétrica. 
- Uau! Vamos estrear! – Magnólia chega na Variant carregada com colchões e roupa de cama. 
- Está disposta mesmo?
- Claro, Rodrigo. Quero dormir na NOSSA casa, primeira noite!, sagrada!
- Mas não tem nada aqui. Só as ruas demarcadas, os terrenos com cerca de arame farpado.
Ela nem lhe dá ouvidos. Já entrou na casa, acendeu todas as lâmpadas. Combinaram com o mestre de obras para deixar três cômodos limpos.
- Nem quero saber, eu te apoiei quando propuseram te dar o terreno para você mostrar que podia fazer uma construção boa, definir o padrão. Tem gente da Colonizadora que só comprou lote aqui porque você disse... nós dissemos, que era o lugar do futuro. Jardim Eldorado.
*
- Já deixei o Rod Junior no colégio. Reunião de diretoria agora, Doutor Rodrigo. – ela ri enquanto deixa a caixa arquivo barulhentamente sobre a mesa – Você não tem vergonha de te chamarem de DOUTOR, você mal terminou aquela faculdade!
- Eles me chamam também de Professor às vezes. Eu expliquei que você é que era sócia da escola, PROFESSORA de matemática Magnólia.
- Só por enquanto, a última professora de matemática que a gente arrumou era analfabeta.
- E a diretoria da empresa, nós dois, começa a reunião! – ele se recosta na cadeira da escrivaninha que, junto com uma mesa, uma prancheta de desenho, duas cadeiras e um sofá, completam, com um arquivo metálico, a única mobília da sala no primeiro edifício alto (cinco andares! elevador!) da cidade. – Nosso império está rendendo?
- Pagamos as contas e não precisamos muito de sócios capitalistas. A banca, o colégio, seu escritório de projetos e a loja franqueada de perfume estão de vento em popa. 
- O que falta é concorrência.
- O pessoal da Colonizadora parece que não acredita na cidade... tudo bem que a madeireira está fazendo rios de dinheiro, e a soja...
- Enquanto isso, conversei com aquele cara que passou aqui; acho que vai dar para montar a distribuidora de bebidas: cerveja, refrigerante, água mineral...
*
Rodrigo se lembrou de tudo isso quando reviu a Variant, ainda funcionando, adaptada como camionete improvisada, entregando marmitas acomodadas em grandes caixas de isopor. O rapaz que fazia a entrega contou que o carro é o xodó do pai, que começou o negócio da marmita a muito tempo, mas que agora não tem saúde mais para sair pelas avenidas da cidade para fazer entregas. Rodrigo acha que ele não acreditou quando disse que ele é que trouxera o carro para Novo Paraiso.
Agora dirige um carro de tecnologia alemã, com injeção eletrônica (o distribuidor nunca vai molhar, aliás nem tem distribuidor), GPS e câmera de 360 graus para manobra. Só vai de casa para o escritório ou para o Novo Paraíso Golf Club, recentemente inaugurado. A butique de Magnólia vai fazer um desfile lá na sede, da nova coleção de uma marca carioca.
Da última vez que eles saíram juntos no carro, ela ficou postando opiniões em várias redes sociais no smartphone. Pensando bem ela não lê mais revistas. Existem revistas ainda?
Rod Junior deve assumir o escritório de projetos... a construtora, dele. A filha, Dália, já tem um blog para influenciar as meninas da cidade, deve também herdar em vida a butique da mãe. 
Talvez ele siga o exemplo do dono da Variant, afinal não sente a saúde muito boa.
Mas isso tudo na mutuca, escondido. E ficou em Arroio das Antas. E muita gente diz que por causa de... Dona Astrolábia.
Aliás, lábia tinha ele, o Marcio Aurélio. E começou a cercar Dona Astrolábia, para desespero tanto do povo da Colonizadora quanto dos Carrilhão. Mas a solteirona acabou mesmo aceitando o flerte do sulista.
E aí são as conjecturas... como dizem.
O fato é que numa noite, finalmente, Dona Astrolábia foi convidada para a casa nova que Marcio Aurelio tinha feito na vila. Casa bonita, de material fino, onde ele “se escondia dos problemas”, como disse para ela. 
Dona Astrolábia nunca tinha conhecido um homem assim, que conversasse com ela, que fizesse a corte. E nessa noite ela contou. Contou tudo. Que não era solitária porque queria ou gostava; que vivia retraída porque, bem, há muito tempo, quando ela era inocente, o velho tio advogado na capital a levara para o quarto e fizera... aquelas coisas, sabe.
- Eu não gostei, eu não sabia... e não foi uma vez só. E ele sempre deixava bem claro que agora não adiantava mais, que ela não ia arrumar ninguém para casar. Que ninguém casa com quem já foi inaugurada. Dizia assim: inaugurada! E acabou que ele mesmo começou a dizer que eu era louca, e meus pais me mantiveram afastada. Eu chorava muito, Marcio Aurelio, chorava...
Marcio Aurelio nada falava.
- Mas agora eu encontrei você, e me disseram que você é vivido, e eu acho que você não se importa com isso, que agora seus parentes vão fazer uma cidade melhor que Arroio das Antas, e a gente pode começar de novo, novo tempo... porque eu te amo, Marcio Aurelio.
Marcio Aurelio não falou nada. Atacou.
- Já que está inaugurada, vamos aproveitar a porta aberta!
A arma que apareceu no cenário ninguém sabe se era dele ou dela. Mas Dona Astrolábia descarregou duas vezes em Marcio Aurelio. Descarregou pelas várias solteironas enganadas e abusadas pelos figurões das famílias, descarregou pelos sonhos semeados e destruídos pelos covardes que assistem, ou querem aproveitar também, descarregou pelas meninas velhas que são essas mulheres de olhos secos que exibem suas desesperadas esperanças nas janelas dos sobrados e dos puteiros. Descarregou e voltou pra casa a pé, com o revólver fumegando na mão crispada.
Bom, é claro que nem Carrilhões nem o povo da Colonizadora, queriam muita propaganda sobre isso. Não adiantou vir polícia da capital: virou acerto entre traficantes ou similar. Melhor enfiar Marcio Aurélio num lugar discreto no novo cemitério da nova cidade; e nem no mausoléu da família, mais para longe da entrada ornamentada.
Dona Astrolábia, essa guardou o revólver, exigiu seu pedaço do patrimônio familiar; dizem que negociou bem. As meninas Carrilhão é que defenderam ela, que peitaram os mais velhos, que não deixaram que esquecessem, que começaram a desconfiar dos ramos políticos, judiciários e até eclesiásticos da família. E mesmo o povo miúdo de Arroio das Antas contava a história como estória, como lenda. Ela ficou um tempo numa casinha dela, ajudando quem pedia, contando sua sina, exigindo das visitantes que exigissem mais da vida e dos outros, que sempre tinha um revólver que aparecia para calar as injustiças. Depois sumiu num ônibus, daqueles primeiros que colocaram aqui na rodoviária.
E se a gente não sabe onde ela foi parar, a gente imagina, a gente deixa ela na imaginação. O que eu sei é que já tem um povo aí mais ao norte que está rezando, fazendo novena para Dona Santa Astrolábia do Norte. Se você quiser tenho até aqui no bolso a oração aprovada pelo sínodo...

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