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Gabriel Francisco de Mattos 

É arquiteto, professor universitário, escritor, quadrinista e poeta (bem) bissexto. Participou das revistas Vôte!, Canalha e Gorjeta. Little Inferno faz parte do Universo de Novo Paraíso, cidade fictícia fundada na segunda metade do século XX em Mato Grosso.

LITTLE INFERNO

Isobel saiu da estrada que deixava Novo Paraíso do Norte. Ainda era possível ver as luzes da cidade, ao longe, com um pouco de boa vontade. Ou muita. E olha que Novo Paraíso (do Norte!) crescera. E muito. Já deixara de ser a cabeça de ponte da “Conquista da Amazônia”, já não tinha mais o “Clube dos Novos Bandeirantes”. As novas (novíssimas?) gerações acabaram com essas referências aos pioneiros; daí a pouco seria inaugurado o Golf Club de Novo Paraíso. Assim mesmo: Club.
Isobel saíra da estrada (futura Avenida) para entrar no Posto Novo Oriente. Na verdade, não no posto, mas na entradinha dos fundos, onde uma modesta plaquinha indicava Little Inferno. O posto estava aberto, Little Inferno não. Apenas com a porta entreaberta.
O Japonês (ninguém se lembrava mais do nome dele, ficou Japonês do Posto) abrira o posto ainda da Esso (Só Esso dá ao seu carro o máximo) nos primeiros tempos da Colonizadora. Depois assumira a distribuidora da Petrobrás, jogara, perdera, e hoje era só o dono do Posto Novo Oriente. E de Little Inferno, o que ele negav;, dizia que alugava o espaço.
Japonês... é, acho que não somos assim tão grandes... – pensou Isobel descendo da camionete cabine dupla e entrando pela porta entreaberta.
O expediente ainda não começara no Little Inferno, pelo menos não o do bar. Havia movimento ao fundo, nos cubículos escondidos, e mesmo atrás do balcão de bebidas.
- Dona Isobel?
Ela ficou tão surpresa quanto a funcionária do sofisticado Spa Des Dames, onde ela tratava seus ainda belos cabelos loiros. 
- Eh...eu também trabalho aqui. Na administração... 
Isobel sorriu. É, somos grandes mesmo, vidas duplas na cosmopolita e aberta Novo Paraiso. 
- Ah, seo Osmar está ali...
Isobel acompanhou a moça até uma mesa discreta mais ao fundo.
- Obrigado, Moyra. – Agradeceu o envelhecido (mas resistindo!) senhor de barba meio desgrenhada (e salpicada de fios brancos) aboletado atrás da mesa e de um copo de uísque com gelo.
Moyra... Eu é que nunca mais volto lá no Spa Des Dames...
- Sente-se, querida.
- Do quinto andar do prédio mais alto de Novo Paraíso a uma mesa do fundo do Little Inferno. Você cresceu, Osmar.
- Você queria me encontrar, marquei num lugar neutro. – mudou de tom - E seguro.
É, seu marido (ex-marido!) crescera para baixo mesmo.
- Sabe que o Japonês batizou este bar de Little Inferno em homenagem à música daquele filme de discoteca? Só que a música era Disco Inferno...
- Seguro, Osmar?
Ele bebeu um gole do uísque. Fez que sim com a cabeça. 
- Mas já estou me aprumando. Vou entregar uma das fazendas. Você e as meninas vão ficar de fora dos processos... de tudo. 
Isobel olhou a decoração da boate (bar uma ova!). Até que era discreta, meio forçando um ar sofisticado. Na falta de outro espaço assim em Novo Paraíso...
- Não posso ficar muito fora da fazenda...
- Já conversei com seu pai.
- Então a nossa situação está “estruturada”. – Era a expressão do Velho: Situação Estruturada. 
- Ele não ficou muito contente, mas foi o que deu para fazer. Vamos ficar aqui pela cidade, pelo menos até as coisas acalmarem.
- É, aqui é seguro. Se você voltar pro Paraná, tem outros policiais, outros jornalistas.
Isobel lembrou da Storyville de New Orleans (ela, e Osmar, adoravam Pretty Baby), da Rua do Siriri em Aracaju (também gostava, só ela, do livro do Amando Fontes) e da Sin City da violenta história em quadrinhos (ela só lera o primeiro volume, não vira os filmes). Lugares de exceção, lugares onde as estruturas não existem. Como viera parar ali, nesse enredo de novela hard boiled?
E Novo Paraíso do Norte era tão Canaã, tão novo começo, esperanças. Osmar assumindo um pedaço do patrimônio da família, ela dando aula no primeiro curso superior de Letras e Literatura da cidade, as filhas...
- Cadê seu cunhado? 
- Com a Gisella no Canadá. Aquela maluca acha que vai conseguir roupas chiques pra butique dela no Canadá! Eu iria para Milão...
   O cunhado foi que os apresentara, um sujeito meio vida torta (também) como Osmar, mas que acabara se organizando, pelo menos tocava a fazenda de soja numa boa. Osmar quisera mais. 
- Você vai na inauguração do Golf Club? – pense no futuro, Isobel, você tem duas filhas.
- Gosto como você não pronuncia o e. E... bem, fiz as contas, tenho 0,03% do Club, vou levar uma daquelas bandeirinhas de buracos, não dá nem para levar um carrinho elétrico. Se o clima estiver calmo, dou uma passada.
- Ótimo, me avise. – Ela se levantou – Era só isso, daqui a pouco estamos divorciados, e parece que aquela separação de bens foi uma boa decisão.
Ele só bebeu mais um pouco do uísque, já aguado.
Isobel deteve Moyra (Moyra!) que se prontificava a leva-la até a porta. Deixou o ambiente fechado e saiu na noite que já tinha começado.
A camionete cabine dupla ficaria com ela, as filhas estavam com o colégio particular pago até o ano que vem, a casa (nem um pouco modesta) estava no nome dela. Uma poupança para as meninas e uma conta obscura num banco obscuro para ela. O Velho gostava dela, afinal de contas. Pena que Osmar ficara no caminho. Era muito bom poder fazer planos novamente, pensou enquanto sentia o ronco do motor dois ponto zero sendo ligado.
Entre o Posto Novo Oriente e a entrada da cidade chorou um pouco.

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