Gabriel Francisco de Mattos
Continua sendo arquiteto, professor universitário, Mestre em Educação e Doutor em Estudos de Cultura Contemporânea. Quer ser mais alguma coisa ainda, vai tentando por aí.
FRONTEIRA
- Está vendo, eu chego lá!
Observo os gestos largos de Virgílio, a fala já arrastada, a boca mole do whiskey barato. Ele aponta o horizonte ao longe, onde, com muita boa vontade, dá para ver uma nesga de terra. Só isso. E com muita boa vontade.
- É, não me pegaram, e eu estou quase lá!
Lembro de vários filmes antigos, onde os desperados se arrastam nas areias do deserto, sangrando pelas balas dos mocinhos carrancudos, antes do derradeiro tiro de misericórdia. Fim. The End. Sobem os créditos, saíamos maludos do cinema do Colégio dos Padres. Tepepa, Sabata, Sartana, Gringo, Ringo... não, Ringo não, esse era americano.
Bebo um pouco mais de meu energético enquanto Virgílio senta-se ainda apontando o lá quase invisível. Pede outra bebida, mais forte, da qual não entendo o nome. Eu não posso beber porque aqui no Canadá qualquer dose minúscula aparece no teste ao qual os policiais educados submetem os motoristas. Daqui a pouco também passa a hora até a qual é permitido o consumo de álcool neste condado, então Virgílio quer aproveitar.
- Grande Quaresma! Quanto tempo! – Virgílio está mais gordo, mais desleixado com a roupa (como se fosse possível), e inegavelmente muito mais velho.
- Oops, esse nome não.
Ele ri. Nunca levou nada a sério mesmo. Tento me enganar pintando-o como uma boa alma, ainda um adolescente cheio de energia que preferiu não abraçar as drogas ou vida de playboy, mas a causa. Menos os personagens da Dolce Vita felliniana e mais os impenitentes carbonários de outros filmes italianos.
Ele pelo menos foi até o fim. Eu nem entrei mesmo na clandestinidade. Não ficou claro se ele participou de fato do sequestro do embaixador americano, mas foi preso e acabou trocado por outro sequestrado. Cuba e o mundo. Detestou Cuba, não quis saber de plantar cana e recitar evangelhos comunistas. Entrou em uma aventura que ia para o norte da África e desertou na Europa.
- Sua vida daria um livro.
- Minha vida daria um tiro na minha testa. E dado por algum amigo antigo!
Sinto que ele fala sério. Apesar da anistia, também não se adaptou no Brasil. A família preferia mantê-lo longe, afinal os tempos eram outros. Como nos livros ingleses foi proposto um exílio dourado na Jamaica, como o jovem Ian Fleming. Virgílio topou, mas só o tempo de conseguir um visto para o Canadá.
- Vou continuar tentando, camarada Quaresma.
Acho graça. Acho muito bom achar graça. Por muito menos paguei um preço alto. Não fui preso, mas meu primo sem vergonha contou pro meu pai que eu andava com comunistas. Fui chamado de volta para casa, deixando o agitado e pornográfico Rio de Janeiro, e enfiado numa fazenda do nortão de Mato Grosso. Nada de curso superior para o terrorista. Só essa clandestinidade silenciosa, sem a causa, só a convivência de boias-frias, jagunços, contrabandistas, cobras, onças. Não fosse aquela região cair no processo de descongelamento da Amazônia Legal, eu não conheceria Gisella (Guísela, ela corrigiu germanicamente já na primeira vez que a gente se encontrou) e não entraria em contato com A Colonizadora.
- Eu vou pra lá, cara... – Virgílio se acalmou um pouco. Noto que a bebida agora é uma garrafinha de vidro colorido, da qual ele bebe no gargalo.
Com o nome envolvido no sequestro do embaixador americano, ele jamais terá permissão para entrar nos Estados Unidos da América. Lembro-me de um conto do Saul Bellow, onde um professor universitário irritante acaba envolvido num esquema de falcatruas e precisa fugir para o Canadá. Achei engraçado quando li. O cara não podia voltar para os Estados Unidos porque seria preso.
Também teve uma palestra do Arrabal, naquele encontro no Rio Grande do Sul, onde ele, acho que meio embriagado, disse que a única coisa que os comunistas acreditam é... n’Os Estados Unidos!
Rio da lembrança e Virgílio ri comigo.
- Cara, você se lembra de tudo!
De tudo que leu, como diria minha Guísela. O que eu podia fazer?, fiquei trancado numa fazenda de merda, me defendendo dos próprios empregados, dos vizinhos e dos contrabandistas. Acabei me refugiando em qualquer livro que encontrava, dos policiais em brochuras fedidas aos clássicos em capa dura, passando pelos livros de letra minúscula de um certo Círculo do Livro e os exemplares luxuosos da coleção dos prêmios nobel de literatura.
- Cara, - sou acordado pela voz já tranquila de Virgílio – a fronteira passa pelo meio do rio. Na outra margem já é os states.
Afinal, minha Guísela foi a libertação. Consegui a duras penas convencer meu pai a vender a fazenda para A Colonizadora, durante uma viagem à capital, onde ele ameaçou me entregar para o SNI. E era sério!, meu irmão estava louco para se livrar de mim, tinha feito a cabeça do velho. Afinal, eu era o Doidinho do José Lins do Rego, do Ciclo da Cana de Açúcar, o herdeiro fodido que só pode pensar em vender o patrimônio.
Mas eu peguei meu irmão de boa. Numa noite em que saímos só os dois, fui eu que o fiz se borrar de medo. Falei dos contrabandistas com os quais eu negociava, de células armadas que ainda me deviam favores, de pistoleiros que por uma quantia ínfima meteriam uma bala na cabeça dele. O menino do engenho ameaçando com o moleque Ricardo.
E depois eu já tinha negociado com A Colonizadora. Uma boa grana para uma fazenda que só tinha mesmo de valioso uma boa quantidade de madeira, que a gente não conseguiria derrubar legalmente; já A Colonizadora...
Peguei minha parte no negócio (mais o por-fora que evidentemente tinha negociado, tanto com meu pai quanto com A Colonizadora) e era só isso: estava por minha conta, com irmão e pai querendo me ver longe. Acabei ficando por lá por cima. Aquilo desenvolveu mesmo, digo economicamente. Voltei para a faculdade, para agradar minha Guísela, e formei-me em Letras e Literatura (um dos poucos cursos no campus avançado da Federal), afinal “lembro de tudo que leio”. Comecei a escrever artigos para revistas acadêmicas e acabei dando aulas numa faculdade particular que abriu por lá. Foi assim que acabei com “minha fase Scott Fitzgerald”, aquela de herdeiro com horizontes limitados. Ele tem um conto, que achei pesado, sobre uma menina que o pai morre e tem grana só para tentar um casamento. Desesperador. Não tanto quanto outra herdeira, mais trágica, do conto do Mário de Andrade, Nízia Figueira, acho, que acaba alcoólatra...
- Aliás, cara, tem um segredo que preciso te contar. Quanto tempo mais você vai ficar por aqui?
- Bom, pouco, a Gisella minha mulher...
- Guísela mesmo, cara?
- É alemão, seu inculto!
- Cara, você acabou mesmo o intelectualzinho do pecebê, o nosso Partido Comunista Burguês.
- Cala a boca, Virgílio, ela não sabe nada desse meu passado. Aliás, nem eu sei. O que a gente estava fazendo...
- Mas quanto tempo, comissário do povo?
- A gente está só passando por aqui, a Gisella tem uma butique...
- Guísela´s Coiffeur, sei...
- Quase isso. Quase mesmo. Couturier, que isso que você falou é cabeleireiro. E a gente veio comprar umas coisas nos outlets dos States. Ela vende por fora. Dei uma volta por aqui quando descobri seu endereço.
Ele dá um gole profundo na garrafa pequena e grita com a garçonete loira para trazer o último, que só faltam quinze minutos para começar a proibição.
- Mas sério, cara. – ele se aproxima de mim, bafo de álcool – Quero te mostrar uma coisa. – aponta a outra margem, agora invisível na noite. – Eu vou chegar lá.
A garçonete loira deixa o copo de whiskey na mesa, sorri condescendente com os bárbaros. Velhos, é o que somos, velhos, gordos, acomodados...
- Eu vou pra lá.
E mais confidente.
- Aliás, já fui. – um grande gole – Tenho um contato que atravessa o rio com um barco preto, atravessa a linha da fronteira no meio do rio...