

Felipe Holloway
Nome literário de Marcio Felipe da Silva, nasceu em 1989 na cidade de Canindé, no Ceará, mas radicou-se em Cuiabá, Mato Grosso. É formado em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Mestre em Estudos de Linguagem pela mesma instituição. “O legado de nossa miséria”, seu primeiro romance, foi o vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2019.
A QUEDA
Ela escuta o baque do quarto, está lendo, ainda há pouco ele abriu a porta e a observou, não precisou tirar os olhos do livro − a trama se aproximava de um ápice que ela imaginava ter adivinhado lá pela página 200 – para saber que era ele, só estavam os dois no apartamento, só havia os dois no apartamento nos últimos oito meses, mas o baque foi impossível de ignorar, um som abafado, meio úmido, como se um saco de cimento tivesse sido atirado do quinto andar em cima de uma poça, ela deixa o livro de lado sem marcar a página, sai do quarto e diz o nome dele com a última sílaba em tom ascendente, como a mãe que se certifica de que o grito que acabou de escutar não tem qualquer relação com seu filho, a calma do timbre procura disfarçar a urgência, uma necessidade insidiosa de ir até a janela cujas grades ele tinha insistido em remover há duas semanas (“o rapaz da TV a cabo pediu, senão ele não consegue acertar a posição da antena”), mas ele não responde, vai até o outro quarto, o banheiro, a cozinha, nada, ninguém, nenhum som, e então um barulho humano sobe lá de fora, um barulho que tanto pode ser bom-dia quanto meu Deus!, e que, mesmo em sua indefinição, já funciona como o arremate sonoro de um conjunto de situações intermitentes, desconexas no tempo mas interligadas em significado, sinais encadeados cuja importância ela se esforçou para não reconhecer, ou para fingir que não existia, um pouco como os personagens do livro que terminava de ler ignorando a que final previsível o conjunto de evidências dispostas nas páginas anteriores os estava conduzindo, ela não vai até a janela, em parte por medo do que verá, das mil mortes que morrerá enquanto desce as escadas até o térreo, até chegar à constatação tátil e ampliada da cena que, do quarto andar, lhe chegara visual e reduzida, mas já desumanamente impossível de reverter, em parte porque o trajeto entre o seu andar e o térreo ainda poderá comportar a resolução corriqueira daquele proto-pesadelo, um esbarrão nas escadas com ele, que só tinha descido para pegar a correspondência na caixa, e enquanto abre a porta do apartamento, um papel desponta em sua visão periférica, em cima da mesa, um papel que talvez já estivesse ali mais cedo, já estivesse ali desde sempre, mas cuja evidenciação instintiva, agora, tem uma conotação na qual não quer ou não pode pensar, de modo que fecha a porta sem encará-lo, 14 horas, o bloco vazio, um cheiro de bife grelhado sobe do poço, o elevador está em manutenção já faz seis meses, se esquece de trancar a porta por fora, é uma queda curta, se diz, e há o cajueiro na calçada que sem dúvida amorteceu o impacto, isso se tiver mesmo havido uma queda, o que ela tenta forçar as circunstâncias a perceberem como algo absurdo, de que forma poderia um dia comum, desprovido de premonições, até de nuvens, ser também o do fim de tudo, mas a verdade é que já começa a acreditar, já começa a achar impossível que na curva para o lance seguinte irá encontrá-lo, impossível que todas as vezes em que o viu com o olhar perdido na janela do ônibus, deitado na cama, numa roda de amigos, não fossem um prelúdio para esta tarde, a frouxidão dos eu te amo, a pena de deixá-la como a última coisa que ainda o impedia, a gradativa corrosão desse precário elo final com a realidade, o sexo incomum na noite anterior, a devolução de livros emprestados sem a contraparte da exigência dos que havia emprestado, a serenidade, o esforço para parecer bem, essa brandura tão típica de quem já desistiu, de quem já se desenrodilhou da camada de fios que o prendia a uma necessidade atávica, irracional e compartilhada pela maioria, de manter a consciência perdurando, e ao final do primeiro lance ela está se esforçando para recapitular a última conversa que tiveram, não se lembra com precisão das palavras, mas sabe que foi algo terno, uma cálida rememoração pré-sono dos primeiros tempos, das festas da faculdade, da chuva ao abrigo de um coreto no centro, e isso de alguma forma a conforta, saber que, se o que encontrará alguns metros abaixo for o que o conjunto de circunstâncias espalhadas nas páginas anteriores fizeram supor, o que ficará em sua mente não será a lembrança de uma briga, de uma palavra mal empregada ou de um silêncio cheio de rancor por alguma banalidade cotidiana não verbalizada, mas a docilidade do início, quando a espiral de degradação não existia, em nível algum, e isso desperta nela − sem uma ordem consciente, sem nem mesmo se articular de forma discernível, a princípio – uma ansiedade diferente, insidiosa mas irresistível, que aos poucos deságua, cinzenta, na ideia de que, passadas todas as sutis e elaboradas fases de sua dor, passada a onipresença das memórias da existência dividida, passado (durante talvez o dobro ou o triplo do tempo em que estiveram juntos) o vácuo sulcado pelo fim unilateral que ele lhes impusera nesta tarde, passada a incapacidade de deixar sua apatia por qualquer outro estado da alma, poderá voltar a viver, em vez de meramente suportar a realidade ao lado de outra pessoa, poderá ser de novo alguém com um conjunto de possibilidades à sua disposição − alguém capaz de se alegrar com a perspectiva de que alguma delas conduza a um estado de felicidade permanente ou menos descontínuo, e então, tentando por tudo sufocar essa torrente de sentimentos vis sob o peso do amor ainda não dissipado, e ao mesmo tempo incapaz de saber se tal comportamento já faz parte do plano de se entregar com sofreguidão à tristeza profunda dos primeiros tempos, prenúncio necessário da alegria duradoura, ela chega ao térreo e abre a porta.