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Eduardo Mahon

41, é carioca da gema, advogado e escritor. Mora em Cuiabá com a esposa Clarisse Mahon, onde passa sufoco com seus trigêmeos: José Geraldo, João Gabriel e Eduardo Jorge. Autor de livros de poemas, contos e romances, publica pela Editora Carlini e Caniato.  

GREVE VERDE

O dia amanheceu como qualquer outro dia – lua que sai, sol que entra. Mas nada foi normal para o povo daquela cidade. Quem despertou primeiro pôde descrever um cenário assustador. Estava tudo igual ao dia anterior – a rua, a lixeira de alumínio na calçada estreita, a bicicleta das filhas do vizinho, os postes de luz, os carros estacionados, tudo nos devidos lugares. Mas faltava alguma coisa e ninguém sabia o que era. Havia mais luz. Parecia que circulava mais ar no vento frio que não encontrava obstáculo. O espaço da velha cidade, antes pequeno, apertado, depressivo, estava por demais largo, arejado como nunca antes. O bairro parecia que dobrara de tamanho, as ruas mais limpas, as casinhas maiores, tudo ganhava uma dimensão nova, muito embora nada de novo houvesse mudado. A velha que limpava todos os dias a calçada das folhas caídas de uma jabuticabeira foi quem primeiro reparou: naquela manhã, só havia fezes de cachorro e nada de folhas caídas. Ela olhou para cima e, somente então, deu-se conta que a árvore que plantara quando criança simplesmente desaparecera. Ao olhar em redor, viu que todas as outras árvores também sumiram do dia para a noite, sem dar satisfação. Quem acudiu a velha que gritava não entendia a gagueira nervosa. Antes de ser levada pela ambulância, a mulher aterrada não conseguia fazer nada mais do que apontar para o céu limpo. Ela foi embora, mas o susto não passou. Os cidadãos plantaram-se no meio da rua de tão pasmos. As árvores haviam mesmo desaparecido. Não deixaram folha, flor, galho, raiz, nada que lembrasse que, um dia, houvera um ser vivo e verde naquela cidade. Não havia explicação plausível na botânica convencional. Sem sinal de lenhador interessado na devastação, uma coisa era certa – derrubadas é que tinha sido. O silêncio daquela noite não foi corrompido por um único machado. Fosse o que fosse, o alarme geral foi dado pelas autoridades. Toque de recolher. Alerta máximo. Polícia na rua. Nos jornais, as manchetes gritavam dramaticamente em letras garrafais – roubaram nossas árvores! A verdade era bem outra, porém. Sem dar aviso prévio, foram elas que se retiraram. Cansaram-se dali. Quando e porque, não se sabe informar. Discretas como sempre, levantaram raízes sem fazer barulho, esticaram-se para fora do chão e, passo a passo, caule a caule, galho a galho, foram caminhando para fora da cidade até formar um bosque denso num campo antes aberto. Explicação nenhuma especialista foi capaz de dar. Tampouco houve jeito para dissuadi-las a voltar. O caso ficou conhecido simplesmente como a greve verde. Todas as plantas que tinham estrutura suficiente para a longa caminhada aderiram ao protesto silencioso, deixando os moradores sem nenhuma sombra. As que ficaram ou eram muito novas, com o tronco ainda verde e quebradiço ou eram velhas demais para uma peraltice daquele tamanho. O povo daquele lugar ficou enfurecido – que falta de consideração!, Diziam uns para outros. Onde já se viu? De fato, em lugar algum havia se visto um protesto com aqueles contornos. Não faltaram ambientalistas para protestar. Depois, foi a vez dos religiosos. Organizaram-se novenas, procissões, vigílias. O apocalipse chegou a ser anunciado. De nada adiantou. As árvores não voltaram. Mantiveram-se longe e resolutas, umas coladas às outras, de galhos cruzados, como se estivessem amuadas com alguma coisa. O que tinham ninguém sabe porque árvore não fala. No deserto cinza, os passarinhos sumiram, assim como esquilos, joaninhas e até formigas. Das formigas, ninguém sentiu saudade, mas do resto... Hoje em dia, muito embora nenhum turista entenda a razão, a cidade tem por política amarrar as árvores em correntes de aço depois que anoitece. É o nosso maior patrimônio, justifica o prefeito zeloso.

© 2019 - Revista Literária Pixé.

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