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Eduardo Mahon

42, é carioca da gema, advogado e escritor. Mora em Cuiabá com a esposa Clarisse Mahon, onde passa sufoco com seus trigêmeos: José Geraldo, João Gabriel e Eduardo Jorge. Autor de livros de poemas, contos e romances, publica pela Editora Carlini e Caniato.  

A MENINA QUE ROUBAVA CORES

Dizia-se que Estela era filha de um pintor. Mas o tal artista nunca deu as caras para assinar a certidão de nascimento daquela menina que não foi batizada. Aos três anos, a mãe percebeu o problema – não saía nenhuma palavra da boca da criança, nem som, nem grunhido, nem nada. Aflita, a mãe levou Estela ao médico que, após revirar a menina de ponta-cabeça, não encontrou problema algum nas cordas vocais ou anormalidade que a fizesse muda. Deve ser preguiça. Como assim? Preguiça, claro, há crianças que simplesmente demoram a falar e não se sabe a razão. E o jeito, doutor? O jeito, minha senhora, é esperar. Ela era uma mulher valente. Costurando para fora, criou a filha sozinha, sem dar satisfação aos curiosos de quem seria o pai. É um problema só meu, dizia à madrinha, uma beata da única igreja do lugarejo. É esquisito e pronto. Para mim não é, dindinha. É sim, minha filha, a criança vive acabrunhada pelos cantos; precisa de batismo, isso sim. Coitada, é apenas quieta demais. Chama o pai às falas! Olha aqui, dindinha, não falo quem é o pai nem com surra de marmeleiro. A velha carola desistiu, assim como declinaram da curiosidade as vizinhas fuxiqueiras que rondavam a pequena casa branca na qual moravam a mãe solteira com a filha estranha. O tempo não operou para que Estela falasse. Mantinha-se em casa e não fazia nada mais do que pintar aquarelas. A menina começou a ser hostilizada, sendo tomada por abobalhada. Aos sete anos, já mocinha, ela chegava no armazém com a lista escrita e saía da venda sempre com menos do que o dinheiro podia comprar. Penalizava-se a mãe ao ver Estela sofrer com a cisma do povo. Minha filha, você não quer contar para a mamãe porque você não fala?, perguntava sempre. A menina sorria com os olhos e mantinha-se tão serena quanto o cândido silêncio que cultivava. Mas de aparvalhada Estela não tinha nada. Sabia exatamente o que pensavam dela, quem a maldizia e por qual motivo. Decidiu-se pela vingança. Mas não uma reação beligerante que seria frustrada pela força. Não, isso seria chancelar o mexerico de que ela era uma espécie de forasteira indesejada. Estela deveria ser mais sutil e fatal. Depois de refletir no que faria, numa manhã enfiou a paleta que usava na bolsinha rosa e foi andar sem rumo pela aldeia. Por onde chegava, tirava o suporte de madeira que usava para pintar e o deixava tomando ar no balcão da mercearia, no altar da igreja, no banco da praça, enfim, por onde passasse durante a ronda matinal. Aos poucos, os cidadãos foram percebendo que as cores ficavam menos nítidas, mais esmaecidas. A túnica do padre, os vestidos florais das mulheres, as fachadas coloridas dos grandes sobrados, até mesmo o verde das árvores que escoltavam qualquer transeunte pela avenida central do vilarejo. Todas as cores foram se empalidecendo até chegarem a um cinza esquálido. O alcaide, perplexo com o fenômeno, decretou estado de emergência e foi acordar o único juiz da comarca. As beatas armaram-se de fé. Entre uma e outra novena, excomungaram Estela com sua maldição de meninice. A mãe escondeu a menina na casa da madrinha por dois dias. Não adiantou. Quem a entregou foi o médico chamado às pressas para dar respostas ao inexplicável. De lá saiu sem saber a doença da menina, nem tampouco a diferença entre o azul e o amarelo e, com medo do que poderia mais acontecer à saúde pública, dedurou o paradeiro de Estela. Montaram guarda em frente à casa, com velas de luzes esbranquiçadas. Quem preparou a emboscada para a manhã seguinte, frustrou-se. Ao amanhecer, a menina foi visitada por um arco-íris que entrou pela janela do quarto. Pisando em cores, foi-se ela de braços dados com a mãe para um lugar aonde toda aquela gente para sempre desbotada jamais saberia o paradeiro.

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