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Edson Flávio

É cacerense, doutor em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEL/UNEMAT) e pesquisador na área de Literatura. É autor de Aldrava (2020) e escreve desde quando descobriu seu amor pela poesia.

VERSOS ADVERSOS: 
A POESIA EM EBULIÇÃO DE PEDRO CASALDÁLIGA

Pere Casaldálgia i Pla, Pedro Casaldáliga ou simplesmente Pedro é espanhol e vive em Mato Grosso, desde a década de 70, contabilizando umas dezenas de obras escritas entre poemas, cartas, diários e outros. Apesar das décadas em que sua presença pode ser percebida nas letras, no entanto não foi por esse aspecto que ficou conhecido na história desta porção do Brasil. Suas opiniões divergentes sobre a atuação dos “poderes”, especificamente na região do Araguaia, não agradou a muitos. E isso lhe rendeu ameaças de morte e cerceamentos. 


Ordenado padre pouco mais de uma década antes de sua chegada, Pedro Casaldáliga vem para o Brasil enviado de forma missionária pela Congregação dos Claretianos. Ao adentrar o interior do país, experimenta um cenário de destruição ecológica, empobrecimento e negação de direitos imposto pela ditadura e pelo modelo econômico da época.


Mato Grosso era um grande latifúndio. Terra de ninguém que mais parecia saído de uma cena de filmes de “far west”, como proferiu Casaldáliga algumas vezes. Os diários escritos por ele dão conta de registrar seus primeiros dias, meses e anos nesse rincão. As distâncias explicavam todas as ausências, parafraseando o catalão. 


Em sua atuação apostólica de padre e depois como bispo, às vezes, não conseguia expurgar o mal que via, que vivia, que ouvia. A poesia de Pedro Casaldáliga surge, então, como aliada, como bálsamo, como grito, como bandeira e arma de luta. A poesia enquanto liberdade e revolução.

 


PEDRO E A POESIA EM MATO GROSSO
Na obra História da Literatura de Mato Grosso – Século XX (2001), Hilda Magalhães afirma que a literatura produzida por Pedro Casaldáliga é “uma poética que luta contra o silêncio e a dominação” (p. 280). A autora pontua ainda que a escrita de Casaldáliga é “testemunho de luta e de resistência” (p. 280) caracterizando-o, pela divisão da obra em questão, como um autor contemporâneo que, diante dos problemas que afligem a Região do Araguaia, encontra na poesia uma condição de dar voz aos posseiros, indígenas, negros e todos àqueles que são explorados pela máquina do lucro e do poder.


A partir dessa concepção é possível perceber que a literatura produzida pelo autor se firma não só como obra de arte literária, mas como “um verdadeiro arquivo da história do Estado de Mato Grosso”( SOUZA & REIS, 2014, p. 17) a duras penas conhecida pelos próprios mato-grossenses, principalmente estudantes dos cursos de letras. Salvo alguns raros cursos e professores que incluem sua poesia nos curriculuns universitários.


Pedro Casaldáliga teve apenas uma única obra poética publicada em Mato Grosso: Águas do tempo (1989). Embora seus poemas apareçam em obras esparsas e com outros autores, comparada às outras publicadas apenas com poemas de Casaldáliga, esta é a primeira antologia de textos do autor, publicada em Cuiabá, bem como em todo o estado. Tal obra foi organizada pela, então, Fundação Cultural de Mato Grosso e pela Editora Amazônida, nomeações que, juntas, podem dar a dimensão de um projeto cultural que se pretendia desenvolver a partir de incentivos institucionais, aliados à possibilidade de parceria com as universidades públicas. 


Merece destaque a entrevista com o autor, publicada na primeira parte da obra intitulado Depoimento. Nesta interlocução o autor deixa registrado quando começou a escrever, suas influências literárias e o qual o papel da poesia em sua vida. Quando perguntado “o que pode a literatura?” a resposta que se encontra é sua declaração: “tudo o que pode a palavra humana.” 


Essa palavra engajada fez com que Pedro Casaldáliga ganhasse notoriedade fora do país e em outros estados. Seu engajamento, além poesia, também foi decisivo para que sua voz fosse ouvida em outras instâncias que não as literárias. Essa atuação política pode ter sido um dos motivos que fizeram com que sua poesia fosse eclipsada durante tanto tempo e só recentemente, no final da década de 90 é que se iniciaram os estudos críticos sobre a obra do autor em Mato Grosso, primeiramente pela UFMT e em seguida pela UNEMAT, especificamente através das pesquisas do Programa de Pós Graduação em Estudos Literários/PPGEL.

 

PEDRO CASALDÁLIGA E A INTELECTUALIDADE BRASILEIRA

A percepção do potencial literário da obra de Casaldáliga já havia sido reconhecida pela intelectualidade do anos de 1970, principalmente quando Alfredo Bosi, então professor da USP escreve a primeira resenha de uma obra poética de Pedro Casaldáliga publicada no país. Nela, o crítico literário afirma que a poesia do autor é “um modo de trabalhar a realidade” (1978) por meio da “palavra e imagem, de ritmo e canto”. Bosi ainda viria prefaciar uma outra antologia do autor: Versos Adversos (2005).


A resenha é publicada em 1978 na Revista Encontros com a Civilização Brasileira, da qual Bosi fazia parte do Conselho Consultivo. O periódico completava parte do holl de publicações da editora Civilização Brasileira, uma editora que reunia diversos intelectuais da época e cumpria um papel importante na recuperação do país no pós-64. No ano anterior lançou o livro-depoimento de Pedro Casaldáliga intitulado Creio na justiça e na esperança (1977), uma espécie de autobiografia do autor, onde este narra, em forma de diário, partes de sua vida, do nascimento, vida na Espanha, chegada ao Brasil e início das atividades no Araguaia.


A resenha trata de Antologia Retirante (1978), nome da edição brasileira de  Tierra nuestra, libertad, publicada pela Editorial Guadalupe, em Buenos Aires, no ano de 1974. No Brasil recebeu tratamento bilíngue, espanhol/português, com a tradução colaborada por Antônio Houaiss e prefaciada por Alceu Amoroso Lima, o “Tristão de Ataíde”, membro da Academia Brasileira de Letras. A antologia reúne grande parte da obra poética do autor escrita até então. São poemas provenientes de diferentes publicações em espanhol: Memoria de Uriel (até 1964), Llena de Dios y de los hombres (1964-1966) e Clamor Elemental (1971), além de conter alguns poemas inéditos escritos apenas em português.

PEDRO E SUA POESIA HOJE
A poesia de Pedro Casaldáliga pode ser vista como marca indelével de um poeta que soube sentir as dores do povo e as dores da terra, mas não se furtou de exprimir de uma forma artística aquilo que lhe entrava pelos olhos e ouvidos. 


Sua atuação na defesa dos valores e direitos dos seres humanos, operada muitas vezes na denúncia do desmatamento ilegal, expropriações de terra, bem como das situações de privação de uma parcela da população, funcionou de certo modo como um leitmotiv de sua poesia. Conceito que de modo algum fere o valor literário de suas obras, que são frutos, antes de tudo, da experiência revolucionária e também artística do autor, criando uma espécie de “situação-gênese” da obra, utilizando termo cunhado pelo crítico Emil Staiger (1997), na obra Conceitos e Fundamentos da Poética.


Para Staiger (1997), não é apenas o componente estético que imprime beleza à poesia, mas, principalmente, na força que a provocou e que ela carrega dentro de si. A poesia existe porque houve um desejo, ela não é obra do acaso ou da mera elaboração estética. 


Na obra Pedro Casaldáliga e a poética da emancipação encontra-se a seguinte afirmação: “o poeta se recusa à produção de versos que nucleiam os próprios procedimentos, aqueles cujo fazer consiste na exploração de aspectos formais” (SOUZA & REIS, 2014, p. 47). Tem-se também a declaração deque o autor possui “devida preocupação formal” e que não abre mão da inventividade e uso criativo dos recursos estéticos, a fim de “valorizar a função poética da linguagem, sem, no entanto, abrir mão de seus valores humanos e transcendentes” (SOUZA & REIS, 2014, p. 48). Isto faz de Casaldáliga poeta comprometido, antes de tudo, com os seus semelhantes, em uma crítica real do presente.


Essa crítica “real” é a base de sua obra que funciona, no dizer de Antonio Candido (1982, p. 256), como “um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual”. Pedro Casaldáliga não mascara a realidade, mas denuncia e anuncia um novo tempo cheio de esperança e libertação.


Nesta edição especial da Revista Pixé, veremos parte da produção poética desse autor que, passadas cinco décadas, ainda se percebe a atualidade de sua obra. Embora Pedro Casaldáliga esteja debilitado fisicamente e impossibilitado de desempenhar suas funções proféticas e literárias, seu legado poético ecoa como uma denúncia atual contra vilipêndios, sem precedentes, que sofreram e ainda sofrem parte da população, não só do Brasil, mas do mundo todo. 

Edson Flávio Santos
Doutor em estudos literários
Pesquisador da obra de Pedro Casaldáliga

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