top of page
acrílico&guache-sobre-papel-canson-A3-(6).jpg
Edson_Fl%C3%A1vio_edited.jpg

Edson Flávio 
É cacerense, doutor em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEL/UNEMAT) e pesquisador na área de Literatura. É autor de Aldrava (2020) e escreve desde quando descobriu seu amor pela poesia.

AQUELE CAFÉ

Afundou suavemente os lábios na xícara de capuccino ganhando um bigode de chantili. Muito bom! Disse sorrindo. As pernas trêmulas ressonavam no solado de madeira do mezanino. Está tudo bem. Disse para si mesmo assentindo com a cabeça. As mãos apertavam o celular enquanto os olhos buscavam repouso na cobertura cremosa do ganache que escorregava por cima do brownie exalando um cheiro de cacau. Aquele encontro não seria o primeiro entre aqueles dois. Também não seria o último. A prova disso eram os planos que, entre um assunto e outro, faziam para o domingo de manhã.
É estranho quando a paixão assombra duas almas distantes. Ela é capaz de anular as exatidões de espaço e tempo. Assume para si todos os riscos. É tudo muito avassalador. Rápido. Forte demais. Aterrorizante de tão exagerado. No entanto, isso não o amedrontava. 
Solteirão de meia idade. Nunca se casou e sem filhos. Nunca sentiu necessidade de dizer nada sobre si. Nas idas regulares à terapia, era advertido diversas vezes sobre o risco de suas carências não tratadas. Acreditava que só uma paixão podia curar outra paixão. E isso foi sugando-o para dentro de um buraco negro. Era um mantra-catártico.
Negava-se à cicatrização lenta e necessária do peito daqueles feridos pelo Eros incontido. Chagado, não cessava de buscar mais chagas. Como um vício, inclinou-se a viver, dissolutamente, de boca em boca, de cama em cama. Independente de quem fosse.
Vivia só, sempre foi só.
Não importava se a ferida purulenta da paixão anterior ainda latejava escondida. Repleto de frases clichês, dizia sempre que amar é desnudar-se. Estar ali, naquele café, percebendo o entra e sai das pessoas, as lembranças eram como bisturis certeiros de todos os encontros que vivera naquela cafeteria. As cadeiras alinhadas, o vaso de ônix no canto, os livros de poesia que ninguém lia. As sombras subindo e descendo.
Naquela mesa cheia de reminiscências ruminava seus medos, sua dor, suas paixões. Sentia, misturado ao morno líquido arábico, o gosto da frustração, do desalento, do abandono.  Pendendo a cabeça para trás, percebia como era pequeno diante de tudo e enxergava sua fraqueza refletida no espelho ovalado do teto. Sentia sua esperança escorrer pelo tempo. Era isso: tempo. Ele não tinha mais tempo.
Com o ar arrastado para os pulmões e cansado de esperar, mal terminou a última xícara, pagou a conta e saiu.

© 2019 - Revista Literária Pixé.

  • Facebook
bottom of page