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Edson Flávio

É cacerense, doutor em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEL/UNEMAT) e pesquisador na área de Literatura. É autor de Aldrava (2020) e escreve desde quando descobriu seu amor pela poesia.

VÓ NENA

Era sábado. Acordei cedo como de costume. A rotina de trabalho impingiu em mim o péssimo hábito de acordar cedo quando se pode dormir até mais tarde. Vovó jamais aceitava que me espraiasse pela cama para além das oito da matina. Vagabundo! Vociferava ela sempre que sabia que um de seus netos cometera tamanho sacrilégio. E eu, na inocência dada aos pequenos, nunca compreendi o motivo de todos nós passarmos as férias, justamente, na casa dela. Casa de vó tem seus encantos. Seus cheiros, sabores, e infindáveis possibilidades de diversão. Naquelas férias forçadas, confinados no casarão amarelo da esquina da praça, podíamos relembrar cada um dos vasos quebrados durante nossas brincadeiras. 


Vovó está linda, como sempre. Disse Titia Nélia. Eu a achei séria demais, comentou prima Alice, nojenta. Era obrigatório, pisar na casa e ir tomar bença da vó, não importava se a necessidade do banheiro ou a fome eram tamanhas. Vovó era prioridade. Kiko, meu primo mais velho, chegou e quebrando a tradição foi até a copa e acabou retirado de lá pela orelha. Tio Neco o levou até Vovó. Respeite sua vó muleque. Tininha, coitada, sempre muda. Parecia assustada, arrastava o pé e puxava os braços da boneca velha de pano como se fosse desmembrá-la. Prima Sofia tentou ralhar. Xiiiiiiiu, pediu Dona Rosa, a vizinha que fazia broas de milho divinas. 


Ali, naquela manhã de sábado, o centro das atenções, continuava sendo ela. Uma família matriarcal carrega em si uma tradição umbilical. Aquilo nos fortalecia, mas também revelava o que cada um tinha de pior. Todos queriam ver Vovó. Eu repeti o mesmo gesto de sempre: empurrei a porta de duas folhas do corredor e gritei um Vovó sonoro e sem fim que escorregou casa a dentro. Corri para a sala. Lá estava ela. Serena. Plena. 


Eu não entendia o motivo de todos estarmos ali e ninguém falava nada. Olhei ao redor e vi que Tia Preta não estava. Tio Zezé e a Dinda também não. Estranhei. Estranhei mais ainda o fato de serem nossas férias, mas ninguém queria brincar. Kiko tentando enxugar o choro, acredito eu que fosse por conta do puxão de orelha. Alice já não queria mais correr pela casa, só queria ficar de graça com Rodolfo, o filho da vizinha que estudava na capital, um poço de entojo. Tininha foi a única que, puxando meu polegar direito disse, vem vê. Tininha caminhava descalça pelo chão frio daquela manhã de maio. O piso de ladrilho vermelho com detalhes em amarelo nas bordas, já haviam perdido os contornos. Gastos pelo tempo, aqueles caminhos guardavam nossos segredos. Tininha caminhava jogando uma espécie de amarelinha imaginária. Salteava os quadrados. Ora ficava num pé só, ora batia os dois no chão. Parecia mais segura perneta do que usando o par de pernas finas e brancas. Olhava para baixo, apontava o dedinho. Aqui bum,  e ria-se como se estivesse numa batalha naval. 


Parecia criança que não cresceu. Ficou em estado de infância. Me olhava estática e depois ria. Veio, né. E ê foi. E ríamos. Eu ria da articulação boba e demorada que ela dava para as palavras. Tininha ia ser menina linda se não fosse esse problema. Tia Nélia um dia deixou escapar que foi porque demorou pra nascer. Zoraide, a fofoqueira da rua, falava outras coisas feias. Ninguém gostava da Zoraide por isso, exceto Tininha que todas as vezes que a via, acenava sorrindo, mas murmurava, boca uuda.  


Fomos abruptamente interrompidos de nossa brincadeira embaixo da mesa. Já pra sala, os dois. Gritou o dono da razão, Tio Tonho. Nem vi quando chegou. Não deu o abraço costumeiro. Conduziu a mim e Tininha pelas mãos até a sala onde todos estavam como se fosse noite de Natal. 


Vamos logo antes que o sol esquente, alguém disse. Achei estranho que mãe não deu por mim nenhum momento. Tio Tonho me levava de um lado e Tia Nélia do outro. Íamos todos a pé, pela rua, descendo por trás da igreja. E eu não entendia porque ninguém tinha chamado Vovó. Puxei o tio e perguntei, cadê a vó? Xiiiiiiiu, novamente pediu Dona Rosa, a das broas. Tio disfarçando disse, depois a mãe explica. 


|No trote lento eu me perdia nos passos e soltando-me das mãos do tio alcancei Tininha que agora tinha eu numa mão e a boneca semi-desmembrada, que ia arrastada pelo chão, na outra. Vó não, vó não. Eu achando que ela queria ter ficado. Vó tá lá, vó tá lá. Eu querendo saber para onde que eu tinha que voltar. Vendo que eu não entendia, Tininha emburrava-se e eu ria. Mas sem barulho porque Dona Rosa estava na espreita desse deslize. Tininha andava agora em zigue-zague, imitando caminho de cobra, parecia. De mãos dadas eu a seguia por entre a parentela.


O tempo e a caminhada cessaram. Paramos de súbito. Tio Tonho me pegou no colo e deu para mãe. Todos estávamos perto de uma caixa de madeira escura, grande, que brilhava na luz. Primeira vez desde que chegamos que mãe ficou comigo. Num gesto cheio de parcimônia enleou o braço no meu pescoço. Parecia chorar. Senti tristeza imensa. Mãe apertou meu corpo contra o seu, quase esmagando meu ar. Não entendia aquilo tudo. Rostos sisudos. Tia Nélia irrompeu num chororô estapafúrdio e ninguém se importou. Todos miravam aquela grande caixa e iam, um a um, depositando botões de rosas brancas sobre a tampa com uma cruz desenhada. Era assim que ela queria, falou em soluções Dona Rosa. 


Eu, por cima dos ombros de mãe, via Tininha acenando para as árvores e não fazia senso do que ela queria dizer. Enquanto balançava faceira a saia plissada branca de detalhe floral feita pela vó apontava com o dedo algo que era só pra eu ver. Foi então que firmei o olhar na ponteira do eucalipto. Lá no alto e ao sabor do vento vi suas folhas parecendo mãos acenando um adeus. Vó lá, vó láaaa,  li a mensagem nos lábios de Tininha e então sorrimos cúmplices...

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