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Eduardo Mahon
Editor Geral

EDITORIAL

A literatura tem algum dever ético? A pergunta pode ser generalizada para a arte em geral. O artista é jungido a se posicionar eticamente no interior da obra que produz? Ou essa pauta prévia constrange a tão festejada autonomia da arte? É claro que o escritor faz o que bem entende, mas será menos considerado pela crítica ao mandar a ética às favas? Essa discussão já aconteceu com Nabokov, por exemplo. O autor de Lolita foi proibido em dezenas de países. A obra não tece qualquer censura à paixão do velho escritor por uma ninfeta com a qual mantem uma relação de recíprocos assédios. A linda de responsabilidade dos personagens é tão tênue que revolta os mais pudicos patrulheiros do politicamente correto. Ao não se posicionar contra o tabu, Nabokov constrange o leitor que ficará perdido. Podemos atualizar a discussão e ampliá-la para questões contemporâneas: raça, religião e gênero. O escritor precisa ter lado?


Esse preâmbulo nos pareceu apropriado ao refletir sobre a obra de Pedro Casaldáliga. Terá sido ele um escritor que virou padre ou um padre que virou escritor? Antes de prosseguirmos, é de se esperar citar o poeta D. Aquino Correa, um autor pouco conhecido do cenário nacional que pertenceu à Academia Brasileira de Letras, mas consagrado no berço em que nasceu e atuou. Versejando no estilo parnasiano, Aquino combatia os vícios caprichosos do romantismo, identificando sempre o “bom” com o “bem”. Para o autor de Terra Natal, o ofício de escrever bem está umbilicalmente condicionado a ser bom. Daí que muitos poemas são prédicas. 


A arte foi usada para catequisar, além de consolidar antigas imagens de um sertão idealizado. Se os escritores malditos dos séculos XIX e XX mandam pudores morais às favas, Aquino subjuga a autonomia da arte em nome da religião. O bispo-escritor vale-se da literatura enquanto instrumento, uma ferramenta para propagar valores cristãos e o imaginário regionalista que prometia prosperidade. Era talentoso, sem dúvida alguma. Mas não deixava de fazer proselitismo poético, se é que podemos classificar assim. Mas e Casaldáliga? Qual o viés era prevalente, o humano ou o divino? A arte ou a missa? O nosso homenageado submeteu a poesia ao missal romano? Definitivamente a resposta é negativa.


É bem verdade que Casaldáliga lamenta a humanidade cruel, opressora e contraditoriamente desumana, distante do Deus que acreditava. Mas não faz prescrição na literatura que compunha. Sim, comunga com o sistema literário regionalista ao projetar um cenário desolado de um sertão ilhado, abandonado, precário. No entanto, não se trata da terra pródiga e convidativa de Aquino ou do charco mágico de Manoel de Barros. É justamente o contrário. Casaldáliga opõe-se ao resultado do sonho de Aquino: denuncia a devastação ambiental, a concentração de renda e de terra, a intolerância com os povos indígenas, a exploração da infância, enfim, faz a poesia combater os novos mitos do agronegócio. De certa forma, também faz um contraponto à evasão abstencionista de Barros, afirmando-se como um homem que não quer fugir, não quer partir à cata das insignificâncias do subjetivismo extremado.


A questão é saber se, ao organizar uma cartilha politicamente correta para os dias atuais, Casaldáliga não faz o lirismo ceder à retórica política. Porque, na oposição frontal de dois modelos, é muito comum que as antíteses aproximem-se involuntariamente. Quem melhor pode destrinchar essa tensão é Edson Flávio que faz a curadoria dessa edição especial. Sua tese doutoral dedica-se a refletir sobre a obra de Casaldáliga. Temos aqui uma seleção de poemas que gravitam em torno da obsessão temática do poeta, reação combativa e inconformada, felizmente sem a pretensão prescritiva. 


Ainda que o aspecto telúrico seja o alvo do nosso homenageado, a miúde alinhado com sua terra e sua gente, o nome de Casaldáliga transcende ao regionalismo. Não só pelo engajamento contra a ditadura militar e suas políticas de ocupação arbitrária do sertão brasileiro, mas pela força estética da qual brotam “margaridas da utopia impossível”. Essas flores do lirismo de Casaldáliga formarão um latifúndio autoral para o qual o bispo incentivaria a invasão e a desapropriação. Assim o fazemos.

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