Eduardo Mahon
Editor Geral
EDITORIAL
De certa forma, todos os escritores estão imersos no regional. É impossível desapegar-se do local e do tempo, marcadores da vida humana. Importa saber, no entanto, se a inclinação é ou não intencional. No primeiro caso, estamos diante do regionalismo, uma deliberada estratégia de compor uma estética que transpira identidade; no segundo, porém, trata-se de carência de repertório. É possível cantar os encantos da própria vila e, ainda assim, dialogar com o mundo todo. Não é o cenário que determina o alcance da literatura, mas a capacidade autoral de criar situações humanas de identidade nas quais o leitor se perceba como partícipe da obra, jamais um mero observador. Ao confundir-se alhos com bugalhos, são publicados missais de toda a natureza.
Lado a lado, estão nesta edição especial o escritor Natalino Ferreira Mendes e Ciro Fernandes. Ambos de sertões brasileiros sempre distantes, hostis ou idílicos, a depender da pena e do pincel dos artistas. Mais regionalista do que isso? Impossível. Contudo, ao leitor mais atento se impõem duas observações: a deliberada ação em retratar sua terra e a capacidade que ambos apresentam no intercâmbio imagético. A primeira nota é muito evidente. Basta ler o autor e mirar o artista: constroem solenidade através das vestes talares da paróquia. Quanto ao diálogo, comprova-se por exclusão: se não fosse possível, as xilogravuras de um jamais poderiam conviver com a literatura do outro. Dá-se o oposto: é goiabada com queijo!
Daí mordemos o rabo e retornamos ao início: para o talento, qualquer estética é uma opção. O que assegura a perpetuação da leitura é a capacidade de comunicação e os sentimentos produzidos pela estrutura imaginada. Porque, no fundo, nada é real no plano artístico, tudo é fruto da ficção. O filtro é o ser humano. Quanto mais sensível, maior será a atenção que dará ao aspecto dramático, patético, trágico, lírico etc. O contrário também é verdadeiro: a fixação na mera composição de cenário pode indicar incapacidade de inserir a complexidade humana na obra, mantendo a arte às margens do pictográfico, do meramente descritivo.
No Brasil, a literatura não supera um antigo dilema. Ao buscar a verossimilhança, depara-se com a incapacidade de tradução estética do real. Sobretudo por quem dele se evadiu a perseguir um padrão exógeno de cultura. O conflito é um desdobramento lógico, inadequação estrutural imposta a si mesmo, seja pela autocensura, seja pelo interdito à produção alheia. É como calçar um sapato italiano à cata de caranguejos no mangue. Ou ainda, como viajar de chapéu, botina e gibão para comer na boulangerie francesa. Sem dúvida, o céu é o limite, mas o chão é a coerência. Disso tudo, resultou um complexo de autoafirmação: o que deve fazer um escritor para atestar sua brasilidade? Tudo o mais que passe ao largo dessa pauta cheira à traição.
O serviço militar impõe jurar a bandeira. Na literatura, porém, esse juramento compulsório está feito há dois séculos. Escritores de todas as regiões aprendem que devem amar à pátria em primeiro lugar. Antes de encostar no papel, uma missão já está traçada. É uma forma de adestramento intelectual. Dos barrocos aos modernistas, dos românticos aos contemporâneos, a maioria dos recrutas coloca-se em ordem diante das muitas bandeiras que foram criadas. Atenção, escritores! Sentido! Ao som de pífanos, ou gaitas, ou ganzás, ou mochos, marcham elaborando a eterna nacionalidade. Ganha patente quem melhor representar a identidade brasileira. Nesses quarteis literários, quem chega a general reformula a ordem do dia. Mudam-se os dias, mas não as ordens. Como se vê, a arte também é uma forma de poder, onde há oscilantes hierarquias, trincheiras fundas e rasas e, sobretudo, armas de repetição automática.