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Eduardo Mahon

Editor Geral

EDITORIAL
EDITORIAL

O cotidiano foi a matéria-prima do modernismo e continua sendo no que se convencionou chamar de contemporaneidade. O contemporâneo não é propriamente uma classificação, mas um estatuto do tempo. Como categoria, a denominada pós-modernidade ainda não convenceu muita gente. Vejamos o caso de Wanderley Wasconcelos, o nosso homenageado desta edição especial. Aboios, paisagens tecidas de fibras vegetais, longas esperas, o irrisório da memória, esse caldo aparentemente despretensioso rende metáforas existenciais que se desdobram e sensibilizam o leitor. Não creio que possa ele se enquadrar facilmente na taxonomia pós-moderna.


Num mundo de pequenos e grandes centros, Wasconcelos é duplamente periférico. Porque distante das megalópoles e distante da sanha do autoboicote poético. Sua pretensão é trabalhar a imagem e sensação, afastando-se da desconstrução vanguardista que não soluciona o problema central que propõe: o que colocar no lugar do que foi destruído? O que mais me atrai no pouco divulgado Wanderley Wasconcelos é o fato de que ele ainda é um poeta que não produz antipoesia. Resiste nas palavras e precisa deixar em cada verso um pouco de si. Essa fórmula, por mais antiga que seja, faz sentido, comunica e emociona.


Nosso poeta ainda pretende construir algo, ou melhor, reconstruir algo. O que perdeu com o tempo? Foi o que ganhou em letras. Como ultrapassar essa distância enorme? O escritor cria pontes entre o passado parcialmente idílico e o presente concreto completamente desproposital. O que ele foi é o que da paisagem se recorda e, concomitantemente, o que ele é não deixa de ser esse conjunto de lembranças inventadas. No fundo, o movimento poético é um contínuo esforço ficcional sobre a própria existência. Que alívio encontrar um poeta que faça poesia. Francamente, é um alívio saber que resistiremos ao tempo com ajuda da palavra escrita.


Além dessa deliberada estratégia imagética, Wanderley trata de si. Retrata-se como todo o poeta: tempo e espaço são elementos de transformação. Sua lírica é um inventário dos resultados sobre a memória de um homem submetido às altas pressões e temperaturas sertanejas. Estilisticamente, alinha-se ao cotidiano de Bandeira e Drummond, flerta com a estética de Rosa e Barros, e invoca em seu favor a constante tradição brasileira de misturar a personalidade humana com a terra em que vive. As referências são evidentes: o memorialismo desafetado, um pouco pessimista: “Quanto a mim/ sigo tangendo coisas/ os trens do meu passado/ e envergando na alma/ aquele orgulho besta/ de que falava o poeta”.


O fenômeno não se resume ao naturalismo primário, mas não deixa de sê-lo. Ao fechar os olhos, “a gleba vive”, isto é, o passado invocado regressa como um retrato que colocaria na parede. Não é necessário. A descrição da infância, plantando árvores, ordenhando vacas, criando porcos com o pai goiano (verso belíssimo) já é suficiente para sabermos que Wasconcelos considera-se um produto do meio. Sua produção dá voz a esse imaginário do qual não consegue se desvencilhar porque está entranhado tão fundo que a ficção gerou realidade e vice-versa. 


A Revista Literária Pixé desencava Wanderley Wasconcelos das rochas, dos rios, do lombo de cavalos, dos chiqueiros e das profundas memórias do pai goiano. A ajuda de Paulo Wagner, curador deste número, foi imprescindível. Longe é Barra do Garças. Longe é qualquer sertão. Mas, ao chegarmos seja lá onde for, sentimos que o sertão não é um lugar, mas um estado de espírito da denominada brasilidade. Temos orgulho de chegar tão longe e, ao mesmo tempo, tão dentro. 

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