Eduardo Mahon
Editor Geral
EDITORIAL
EDITORIAL
Uma das mais conhecidas histórias de Andersen trata da roupa do rei. Vítima de um falsário, o monarca encomendou-lhe uma túnica. Tais foram as artimanhas do golpista que o manto invisível foi cerzido inteiramente de elogios, embora não existisse de verdade. Todos conhecem o final: uma criança apontou o dedo para o que viu e bradou – o rei está nu! Daí que muitos outros constaram o que era óbvio: o rei estava nu. Provavelmente, sem a exata consciência do que faria, Andersen antecipava uma metáfora apropriada para o estudo da arte contemporânea, incluindo aí a literatura.
De negação em negação, além de forjar uma tradição de rupturas que caíram numa previsível rotina, artistas dos mais variados segmentos insistem na comunicação criptografada. Como as gerações se sucedem e cada uma delas deposita o seu quinhão de expressividade, vivemos no contemporâneo uma meta-meta-meta-arte. É capaz de que as telas, pintadas de nada, sejam vencedoras de prêmios internacionais. Não importa mais a recepção do público, mesmo as mais encarniçadas rejeições. A única expressão realmente relevante é o sentimento do artista que diz o que é e o que não é boa arte. Ai de quem contrariá-lo! Levará uma pública carraspana.
O que nos resta, meros expectadores da inalcançável arte, é reciclar todos os nossos livros. O romance tem coerência interna? Não interessa. Há problemas de concordância e ortografia no poema? Pouco importa. Importante mesmo é que haja muito incenso e banho de espuma. O eixo de gravidade deixou de ser a estrutura da narrativa para dar lugar à temática, de um lado, e à biografia autoral, de outro. Arraigados no que pode parecer conservador, acreditamos que essa festa dure pouco. De qualquer forma, o baile de outros tantos do passado continua firme e barulhento. Haja fôlego...
Neste ano de 2022, comemora-se a Semana de Arte Moderna de São Paulo. De São Paulo ou do Brasil? Tudo indica que, através da reinvindicação geopolítica, o evento pretérito firmou-se de corpo e alma em São Paulo, o que não é ruim de todo. Ao contrário: é sintomático. Um grupo de autodenominados aristocratas, embriagados de éter nas almofadas, embirrou com uma estética artística considerada “passadista”. Trouxeram o que consideravam novidade. O que seria? O rompimento – mais um – com o ultrapassado. Internalizaram nas telas, nos livros, na música o que seria “cultura popular”, sem que nunca os salões fossem franqueados ao povo.
O que de popular havia nas imagens modernistas? O povo soube que estava sendo retratado? Qual seria a opinião popular desse autorretrato que pintaram? O quão brasileira foi a literatura do período? Quem a leu? Quem a comentou? A catalogação de tipos nacionais de fato enriqueceu o extenso inventário de brasilidades que começava 100 anos antes dos modernistas. Sempre importou encontrar o brasil-de-verdade, um país que, de verdade, não existe. Ou melhor, existe pelos olhos dos nossos artistas que pretendem “traduzir” para o mundo o que somos, como vivemos, o que sentimos.
O brasil-de-verdade foi redescoberto e refundado, mesmo que para isso tenha sido preciso importá-lo da Europa. Ainda que o movimento modernista gerasse contínuos canibalismos artísticos, ao se impor uma dura autocrítica, Mário de Andrade foi certeiro. Afirmou que que a principal herança daquela agitada semana foi impingir uma contínua revisão estética na arte brasileira. Essa prática tornou-se manual, o manual virou doutrina, a doutrina virou dogma. Um dos resultados foi o nascimento da tradição da não-tradição, a tradição do não-tradicional. É bem capaz de, algum dia, um dos aclamados príncipes do contemporâneo ser apontado na rua por uma criança a bradar – o escritor está nu! Quem dará voz a essa lúcida criatura?