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Eduardo Mahon

Editor Geral

EDITORIAL

No editorial passado, rechaçamos completamente o dever-ser que a crítica impõe à literatura, retroalimentando um circuito fechado das igrejinhas ideológicas. Isso significa que o romance não deve se prestar a nada mais do que ser lido num sofá de couro em frente a uma lareira? Devagar com o andor que o santo é de barro! Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa... Os antolhos funcionalistas não cabem na fase da criação do texto. O autor não deve estar jungido por pautas prévias que precisem ser comprovadas. Esse incômodo dirigismo não só atenta contra a espontaneidade da obra, como compromete o enredo e a criação de personagens mais complexos, um problema comum na literatura brasileira. Contudo... depois que o livro sai da gráfica, o buraco é mais embaixo.
A literatura não deve ser nada, mas pode ser tudo. Isso significa que a recepção do texto pode se dar de formas completamente diversas das que os autores esperavam. Tanto maior o mérito da obra, se for ela tomada por variados tipos de abordagem e, sobretudo, por públicos diversos. Essa história de “literatura para iniciados” cheira a naftalina. Coisa de rituais egípcios de mumificação. Depois que é publicado, o livro pode circular sem pedágios. O que os leitores entenderão (ou não) será um problema exclusivamente deles. Parece essencial distinguir a criação literária tão livre quanto possível dos múltiplos usos que a literatura pode ensejar. Talvez seja justamente nesse ponto que se confunda muita coisa. Vamos esclarecer? 
Não compete nem aos autores, nem à crítica especializada guiar a leitura de uma criança ou de qualquer leitor adulto. Tampouco é recomendável meter o bedelho no que se fará com o livro – se barquinhos de papel, roda de leitura, análise gramatical ou uma linda fogueira de festa junina. Um romance serve para o debate sobre história, um conto se presta ao ensino da geografia, um poema pode conduzir uma aula sobre adjunto adverbial ou pode ficar simplesmente na escanção do verso. Quanto mais imobilizado foi o uso do livro, maior será o elitismo que se impõe à literatura. Manter lindíssimas bibliotecas vazias é o cúmulo do esnobismo. 
É curiosa a confusão que se faz atualmente sobre o que é elitismo e o que é popular. Em geral, as atenções estão voltadas para o autor. Quem é o autor? Qual a cor dos olhos? Com quem vai para a cama? Quanto tem na conta bancária? Além de ser uma análise profundamente redutora e, portanto, medíocre o fetiche biográfico omite a verdadeira marginalização social, qual seja, a do leitor. Creiam: o elitismo do pintor que retrata um palácio é bem menor do que o do museu que seleciona “como”, “quando” e “quem” vai apreciar a obra de arte. O esnobismo do autor que elabora uma trama no ambiente pequeno-burguês é infinitamente menor do que o de alguns intelectuais que aprisionam a obra nos altos círculos de hierofantes da crítica. Ser popular não é necessariamente escrever como o povo. Ser popular é oportunizar o acesso à literatura.
Sim, distribuir Flaubert para os presidiários. Sim, ler Guimarães Rosa durante o piquenique. Sim, encenar Beckett nas casas de repouso. Sim, declamar Bilac nos hospitais. Sim, dramatizar Nelson Rodrigues na oitava série. Qual o problema? Estaremos replicando padrões mentais colonialistas? É uma enorme contradição impor uma pauta aos autores (sobretudo a social) e não fazer circular o livro no meio do povo. Aí está o abismo entre o dever-ser e o poder-ser. Para alcançar uma qualidade estética digna, a literatura não pode se submeter de forma indigna. Nem na fase da produção, nem muito menos nas leituras que serão feitas, a despeito dos desejos dos autores e dos críticos.

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