Eduardo Mahon
Editor Geral
EDITORIAL
EDITORIAL
Quando o texto é um mero pretexto, morre a literatura para prevalecer o panfleto, a doutrina, o catecismo. Nos dias atuais, ao ler um romance, parece que estamos diante de um seminário de ciências sociais. Literatura aplicada? Isso existe? Muitos escritores contemporâneos acreditam na função social da literatura, isto é, na subordinação da arte às urgentes pautas que desafiam o Brasil. O texto passa a ser um pretexto para tratar de temas que frequentam cartazes, marchas e campanhas: mobilidade social, racismo, misoginia, homofobia, militância ambiental, violência doméstica, exploração do trabalhador rural, em resumo, nosso rol de equívocos seculares. A estratégia é estetizar as misérias nacionais com o objetivo de conscientizar porque, afinal de contas, Joãozinho Trinta dizia que quem gosta de pobreza é intelectual.
Acreditamos que essa cartilha está redondamente equivocada. É muito natural que as pessoas dedicadas à arte de qualquer natureza sejam afetadas pela realidade ao seu redor. Por isso mesmo, a crítica que enfia a cabeça no texto e despreza o contexto tem grande chance de oferecer uma leitura deficitária. Arte é uma expressão humana E nada mais compreensível que a interação com a vida, idealizando, projetando, informando, apoiando ou protestando. Contudo, essa simbiose sempre será mediada pela percepção de cada autor porque, se não fosse assim, teríamos um simples negativo da realidade. É justamente por conta dessa mediação autoral que a arte distingue-se da física, da matemática, da biologia. Alguns campos do conhecimento têm compromissos prévios com a verdade, o que não acontece com a arte.
No jogo entre emissão e recepção, o leitor celebra um contrato tácito com o autor – será sempre ficção a mais realista das obras literárias. O romance é produto de um determinado meio social? Sim, claro, como tudo o mais na vida. Qual a novidade? É isso, mas não é só isso. Pretende-se reduzir a expressão humana às equações deterministas. Portanto, minha gente, um romance pode extravasar o mero espelhamento para sobreviver ao tempo, inclusive desatrelado do contexto inicial em que foi produzido. Não é assim com a música? Alguém sabe qual a motivação de Vivaldi para produzir o seu famoso Opus 8? Será que o prazer precisa encontrar uma explicação no contexto sócio-político-econômico? Só de pensar nisso, o veneziano revira-se no túmulo.
Sem grande esforço, temos o exemplo de Kafka. O autor, entre muitos outros temas, mergulha na questão judaica que era uma pauta europeia da época. Mas a barata que ele criou era apenas isso? Ou era apenas um retrato da exploração do trabalho? Ou era apenas a opressão paterna? Era isso e aquilo, todos os significados originários e quantos mais o leitor conseguir descobrir. E, cá entre nós, os significados mudam muito com o tempo, mas a força estética da obra continua despertando estupefação. O que dizer de Dom Quixote que debochava da literatura de cavalaria? Francamente, quantos romances de cavalaria você já leu? Ainda assim, o Cavaleiro da Triste Figura atravessa os séculos motivando gerações alheias ao contexto de Cervantes.
Mas a literatura é paciente, fiquem tranquilos. Suporta tudo e todos: tiranos que queimam livros, tiranos que escrevem livros e tiranos que analisam livros. Mas não pensem sairão incólumes. O troco vem com o esquecimento de quem tentou fazer da arte um banquinho para discursar na praça. As palmas às paráfrases que se colhem hoje não se comparam ao silêncio de amanhã. É bom lembrar que essa paranoia anticanônica é a mesma que cria ídolos de pés de barro que serão, mais tarde, destruídos por esporte ou por obrigação.