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Eduardo Mahon

Editor Geral

EDITORIAL
EDITORIAL

 

Há uma reflexão de Barthes que rende ótimas polêmicas. O intelectual lembra que a nau dos Argonautas sofreu vários reparos. Ao colocar tábuas novas no lugar das antigas durante a jornada, os aventureiros desembarcaram de um navio completamente diferente daquele que haviam embarcado. Contudo, era a mesma nau de Jasão. Por quê? Barthes aponta que a natureza do barco se manteve a mesma porque os tripulantes o denominavam assim. Essa provocação, a um só tempo, fustiga linguistas, filósofos, críticos de arte etc. Queremos usar a metáfora do navio para tratar das novas tendências da literatura e perguntar: o que escrever que já não tenha sido escrito?


Para respondermos, convém dar um passo atrás. O compromisso das vanguardas com a inovação instalou uma paranoia nos autores e no público. Romper com o passado era a pauta monotemática das vanguardas que, como era esperado, consumiram-se em autofagias. No auge dos movimentos europeus da primeira metade do século XX, uma enorme competição estética gerou a ansiedade patológica pela novidade e pela negação. Os questionamentos foram se radicalizando a ponto de romper com a palavra, com o código alfabético desenvolvido a duras penas. A semiótica lançou sua bula: “tudo é texto”. Uma pintura, uma escultura, a fachada de um prédio e as letrinhas que boiam na sopa de legumes compõem escrituras e, portanto, seriam literatura.


É claro que os primeiros registros humanos foram, na verdade, inscrições em cavernas. Comunicação em essência. Contavam a história de caçadas, das primeiras plantações e criações, da vivência organizada em pequenas comunidades. Vieram as civilizações com seus hieróglifos e ideogramas. Dez mil anos depois, surgiu a poesia visual recebida como literatura sem palavras. Tratava-se de questionar o código de comunicação por ser ele supostamente muito limitado. Além do mais, as fórmulas convencionais de linguagem era acusadas de operar como programas de perpetuação das desigualdades. A vanguarda foi desmontando o antigo navio tábua a tábua, substituindo consensos por novas perspectivas até que surgiu um novo barco com o mesmo nome, mas completamente diferente. 


O resultado dessas reformas em alto mar foi diverso do que se passou na nau dos Argonautas. No caso dos gregos, as tábuas eram trocadas por outras da mesma madeira, ou seja, a metáfora da troca questionava a autenticidade e o ineditismo da obra, mas mantinha a mesma natureza comunicacional. No caso das vanguardas, o que se colocou no lugar das tábuas velhas não foram tábuas novas e sim papelão barato ou o que mais fosse escandalizar. Esse novo barco ainda mantinha o nome de literatura porque não souberam inventar nada que boiasse tão bem. Tudo passou a ser texto: palavras, desenhos, colagens, esculturas de gesso, cimento e neon. Essa radicalização de ruptura fez com que, em alguns casos, a literatura perdesse o maior valor que tem – a comunicabilidade. Esse canto da sereia é tão confuso que os leitores acabaram por entupir os ouvidos de cera de abelha.


Hoje a vanguarda tornou-se um fantasma, um morto que perambula com o qual conversamos aos tropeços. De vez em quando essa entidade fala e não é ouvida. Outras vezes falamos com ela e não obtemos resposta. De qualquer forma, é uma referência incontornável que “nos atrai, nos deslumbra e estimula” – como diria Caetano. O que resta a fazer não é, definitivamente, minar a palavra nem as narrativas convencionais. O que de mais inovador podemos fazer é uma literatura que narre o que ainda não se narrou, o que é recusado, sonegado, escondido ou silenciado. Essa é a verdadeira missão dos Argonautas de hoje: dar voz a novos narradores em paisagens diferentes. O marinheiro contemporâneo não vive de fazer furos no casco para sabotar a própria missão. Entendemos que não há problema algum em navegar num barco literário que se transforme com o tempo, desde que não afunde. A Pixé continua a velejar...

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