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Eduardo Mahon

Editor Geral

EDITORIAL

A grande sacada da crítica contemporânea é perceber que não há uma estética tão pura que seja capaz de classificar um gênero literário como se fez no passado. Não haveria problema algum na imolação de livros em altares da crítica para canonizar ou excomungar já que a função do leitor profissional é, afinal de contas, dizer se o texto é consistente. Muito já se criticou a crítica. Nenhuma novidade haveria em culpar o crítico pelo insucesso de um autor, o que nos parece um ponto de vista tão cômodo quanto medíocre. 


A novidade é que, nos templos da crítica, os dogmas de classificação estão sendo abjurados. Tudo indica que os pensadores da literatura começam a rejeitar essa espécie de monoteísmo espaço-temporal. A obsessão por demarcar estilos e, portanto, cunhar escolas literárias gerou outra paranoia ainda maior: a ansiedade pelo novo. O primado da inovação como objetivo último a ser alcançado fez dos críticos verdadeiros maníacos por catalogação. A partir dos múltiplos modernismos do final do século XIX, o juízo de valor estético passou a se basear na ruptura. De crise em crise, de negação em negação, de esculacho em esculacho, surgiu a tradição da ruptura. 


Essa paranoia renovadora que, de estética em estética, arrebatou escritores no século XX não permitiu à crítica perceber um duplo movimento, próprio de qualquer manifestação artística. Enquanto se constatava que, no seio da velha guarda há sempre o germe da inovação, ignorou-se por muito tempo que, no íntimo de cada vanguarda pulsa a tradição. Trocando em miúdos, pode-se afirmar que uma parte da crítica deu-se conta dessa via de mão dupla. Tal conclusão gera insegurança, é bem verdade. Mas por que temos tanto medo da incerteza?


Com a morte dos críticos canonizados, surgiu um vácuo de cânones. Não terá sido coincidência, evidentemente. É apenas o resultado do fim de uma prática acadêmica. O que estamos experimentando hoje na literatura brasileira? O ultrarrealismo? O neonaturalismo? O pós-romantismo? O antimodernismo? Os intelectuais se deram conta de que os estilos não são (e nunca foram) puros. As expressões literárias são tão complexas que reivindicam o novo por meio do passado idealizado ou, ao contrário, rememoram o passado evocando a modernidade. Essa hibridização sempre foi a característica da modernidade, de Bocage a Joyce, de Petrarca a Beckett, de Cervantes a Proust, de Dante a Borges. 


É possível perceber alguns movimentos na literatura brasileira contemporânea: o desmonte da formulação da identidade nacional convergente, unívoca e grandiloquente; a perda de território das imagens coletivas para o estímulo à memória, à visão subjetiva de um tempo e de um lugar; o nítido engajamento político com segmentos sociais que foram preteridos como personagens e ambientes que foram ignorados como cenários; a estrutura narrativa plurívoca onde as vozes não se organizam hierarquicamente com base num narrador demiúrgico. Finalmente, tudo indica que a maior característica contemporânea é o convívio relativamente pacífico entre estéticas diferentes.


Os escritores rejeitam a fala autoritária das rupturas agressivas. Percebemos que os experimentalismos estéticos continuam (e devem continuar), mas não são recebidos com o mesmo alarde e não fazem o mesmo sucesso. Será por isso que vivemos numa época de transição? Não. Como entender o que se passa na literatura atual? Nossa recomendação é ser humilde. Perceber que as estéticas se trespassam, se misturam, se contaminam e podem se atrair ou se repelir, não é demérito de uma crítica inconclusiva, mas resultado da maturidade do estudioso e, claro, do escritor. Em tempos de quarentena, importa continuar pensando.

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