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Eduardo Mahon

Editor Geral

EDITORIAL

Diante da velocidade com que a arte contemporânea é demandada, observar a produção de uma poeta voltada para um conjunto temático nuclear não deixa de ser uma surpresa. Lucinda Persona, escritora mato-grossense, manteve-se distante do experimentalismo que fustigou seu tempo, o concretismo, o intensivismo, a limpeza da página e a performance não verbal. Preferiu, ao contrário, perfilar-se na resistência oposta por Sophia de Mello Breyner Andersen e Orides Fontela. O esforço literário de Persona não se concentrou nas experiências com a forma e sim noutro cariz: a reafirmação da autonomia da arte por meio da apropriação simbólica do corriqueiro e das ciências biológicas das quais é egressa.


A fuga dos temas clássicos ocorreu em fins do século XIX. Talvez Baudelaire tenha dado origem ao big bang conceitual que desatrelou a arte dos antigos compromissos, seja estéticos, seja temáticos. Tudo serve à arte, mas a arte se mantem independente do utilitarismo. Essa foi a chave do modernismo e quem não o entende escreve, ainda hoje, para agradar os mortos. A partir de Baudelaire (e também de Mallarmé), não houve outro caminho a não ser inaugurar uma sucessão de transformações que, de vanguarda em vanguarda, criou uma ambivalente tradição de rupturas. Daí que os leitores têm a mesma surpresa com as guinadas de Oswald de Andrade e também com o texto imune à ansiedade vanguardista, opção estética da nossa homenageada.


Mesmo gravitando em torno do núcleo com o qual pautou a poesia, Persona alinha-se ao novo. Como mencionado, ao subordinar o quotidiano para ressignificar a temática atemporal (morte, vida, amor, perda), a obra da escritora está imersa no caldo modernista. Quem melhor mapeou assuntos e significados da poesia de Lucinda foi a estudiosa Marta Cocco. O viés utilizado na tese de doutoramento foi o da mitocrítica a buscar o paralelo entre as imagens criadas por Lucinda Persona a partir de elementos prosaicos com antigas raízes simbólicas que se relacionam aos mitos fundacionais da civilização ocidental. A lupa da pesquisadora comprovou a obsessiva estratégia da escritora: antropomorfização de insetos, exploração de fatos quotidianos, projeção simbólica nos alimentos, marcação temporal na transformação do corpo. 


O mérito da obra de Lucinda Persona extravasa esse rol temático. É preciso enxergar o movimento artístico de forma ampla, contextualizando-o no diálogo que faz com a tradição literária atual e precedente. Ao escrever, Persona acredita que “tudo é matéria prima”, isto é, não vê limite na apropriação artística. Aí sim reside a filiação da escritora ao vigoroso tronco da modernidade. Besouros, formigas, fuligem na janela, um pé de couve e a sopa de legumes compõem o rompimento com o mero figurativo. Ao se apropriar do prosaico, a escritora sublinha a importância da poesia como ente autônomo. É arte pela arte, uma tendência tão consagrada quanto criticada no mundo contemporâneo. De um lado, os detratores apontam para o descompromisso político e, de outro, os admiradores ressaltam a valorização da arte independente.


Os poemas de Lucinda não estão a serviço da evocação, nem de lugar, nem de pessoas ou acontecimentos, aposta estética que assegurou a prevalência qualitativa na geração literária da qual faz parte. Mais curioso é que, para chegar ao desiderato, a escritora não flerta intensamente nem com a metapoesia (tão natural em Leminski e Salomão), nem com a crônica do trivial (própria de Drummond e Bandeira). Persona seguiu os passos dos modernistas, mas criou um arcabouço simbólico próprio. Para alguém que não entenda a envergadura literária da nossa homenageada, basta dizer que Lucinda Persona é uma escritora que luta pela arte em si. Nessa batalha, distinguem-se os melhores.

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