Divanize Carbonieri
É professora, poeta e contista. Tem 9 livros publicados, entre eles Passagem estreita (contos, 2019), A ossatura do rinoceronte (poesia, 2020) e Nojo (contos, 2020). Publica também livros de literatura infantil, participa de diversos coletivos literários e foi finalista do Prêmio Jabuti (categoria conto).
A TRANSGRESSÃO
Passei correndo por minha mãe. Sabia que ela não me impediria de sair, mas queria evitar a lenga-lenga das recomendações de sempre. Ajudou o fato de que o ônibus já estava chegando no ponto. Dentro do veículo, virei, como era o costume, praticamente outra pessoa. Que maravilha estar livre, tirar o peso da eterna vigilância materna dos ombros. Então, mais uma vez batendo perna? O que é bom dura pouco. Era a chata da vizinha pegando no meu pé. Não tive vontade de responder. Desaforo ter que dar satisfação a essa mulher. Como se a minha mãe já não fosse aporrinhação suficiente. Porém, sabendo o que malcriações poderiam me custar, me pus a sorrir como se estivesse diante da mais adorável das criaturas. Oi, Dona Glória, que prazer encontrar com a senhora. Tá com uma cara ótima. Se recuperou bem da virose? Mais falsificada impossível. Posso saber onde a senhorita vai toda arrumada assim?, a mocreia acrescentou, depois de ficar uns bons minutos me medindo dos pés à cabeça. Nenhum lugar especial, vou só na escola para a aula de religião. Ah, muito bem. Aula de religião é sempre muito importante. Eu digo isso à Otacília, minha irmã. A filha dela, a Meire, se recusa a frequentar as aulas de religião. Boa coisa não há de dar. É que é difícil mesmo, Dona Glória, voltar pra escola à tarde, depois de já ter passado toda a manhã ali. Cansa. E não sei se a senhora sabe, mas não é obrigatório. A professora já disse mais de uma vez que religião não se impõe a ninguém. Uma bela duma comunista essa professorinha de vocês. Qual o nome da sujeita? Ih, Dona Glória, meu ponto. Satisfação. Inté. Por causa dessa peste, tive que descer perto da escola, tudo para ela não desconfiar. Me esgueirei pelas ruas que me separavam do meu destino original, tomando o máximo cuidado para não ser vista pela linguaruda ou por outra igual a ela. Eram abundantes as jararacas bisbilhoteiras. Diante do prédio de fachada neocolonial, o pequeno lance de escadas foi vencido num golpe só. Meu coração bateu apressado mais uma vez. De novo me senti uma fora da lei prestes a assaltar um banco de cidadezinha. Provavelmente vinha assistindo a muitos faroestes. Giuliano Gema lindíssimo naquelas calças de couro, bronzeado e reluzente por trás do revólver de prata. Beijos ardentes nas mocinhas assanhadas do saloon. Ah, que vontade! O gatilho mais rápido do Oeste. Como eu, que também não podia demorar muito. Como arrastada por um imã, passei rapidinho pela recepção e logo atravessei o espaço deixado pela porta aberta, em estilo cofre-forte, adentrando com ansiedade todo aquele labirinto. Que benção ter acesso assim tão fácil àquele tesouro! As pontas dos meus dedos correram por superfícies de vários tamanhos e formatos, um pouco empoeiradas, é verdade, mas ainda assim uma festa para os sentidos. Na época, minhas escolhas se davam por via intuitiva. E sempre dava certo. Quando toquei nele de repente, eu soube. Um arrepio correu pela minha espinha. Tive certeza de que era o escolhido, ele, o livro que iria ler naquela semana.