Diogo Cardoso
(São Bernardo do Campo, 1983). Poeta. Mestre em filosofia pelo IEB-USP. Publicou o livro Sem lugar a voz (Dobradura, 2016) e a plaquete Paisagens e pântanos (Baboon, 2019). Tem publicações nas revistas Zunái, Mallarmargens, Polichinello, Vidro, Meteöro, além de participações nas antologias Subúrbios da caneta (Dobradura, 2014) e Antologia Primata (Primata, 2018).
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ouço as luzes
estremecidas de janeiro
ouço um coração
bater dentro da terra
uma voz amordaçada
encerra boca nos desesperos
cantando as dores
caladas na coluna
vértebra a vértebra
abrem-se luzes no nascimento
a terra sulca os ossos
edificando o corpo
a semente pulsa e move
o morno no vermelho
em janeiro, o homem
inaugura o verbo
com sete selos na boca
— em janeiro.
[de Sem lugar a voz, Dobradura, 2016]
COREOGRAFIA DOS OSSOS
eu não estava lá
ainda assim a dança acontecia
batida na porta azul do pátio
eu não estava
e adiava-me na dança
não estava
e os nós dos dedos guardavam
gritos e cabelos
choravam flores em meu corpo
esse corpo
cadáver delicado quase
sabia o abraço quando
o azul na madeira
gritava a dança nos ossos dos dedos
o anel que tu me deste
foi promessa quebrada
em oceanos impossíveis
onde você era a certeza esfarelada
o anel guardava o azul
da porta
da noite
habitada no pátio onde
estou onde estivera
a porta azul do pátio
se debate nos nós dos dedos
cantando percussivamente
adeus.
[de Sem lugar a voz, Dobradura, 2016]
A LÍNGUA NÔMADE
se eu falasse a língua dos atravessadores de desertos
se eu falasse toda a areia caída de seus ombros,
se eu falasse ainda a paisagem árida de seus dentes
a paisagem pura dos animais esfaimados
se eu falasse os animais assentados na saliva seca
se eu falasse de dentro da sede dos que morrem sob a lua
se eu falasse os dias habitados na pele da serpente
encerrados nas urnas que guardam as faltas todas
se eu falasse as estrelas pendidas nas pontas dos dedos
se eu falasse o sangue sustentado na costela ausente
se eu falasse a mulher o homem a criança e o centro da adaga
se eu falasse as falésias mudas pendidas na garganta
se eu falasse a voz das flores de sua saia
fazendo ventos em meu desejo
se eu falasse voz corpo o que quer que seja
se eu falasse a delicadeza deitada no mês de julho
se eu falasse as flores cobertas de fogo
se eu falasse os acentos inaugurais de um sorriso
se eu falasse o nome guardado em mim esta noite
se eu falasse
se eu falasse a verdadeira letra que iniciasse o verbo
se eu falasse os números quebrados em teus lábios rotos
se eu falasse o sim o não o nunca o agora
se eu falasse então isso assim lá onde
se eu falasse quando
se eu falasse quente o segredo da sopa
se eu falasse a mágoa acesa nos joelhos
se eu falasse as pedras que choram o chão
se eu falasse durma a grama de seu azul turbante
se eu falasse irilisili
se eu falasse anijiriraã
pisiriliá irujna keresê
khraô sirilitili keresaranaã
se eu falasse
se eu falasse.
FELICIDADE
esta noite eu tive um sonho
seu corpo saia do meu
como uma cadela ressurrecta
saia de mim como um rabo
feliz em minha inocência canina
saia como quatro patas ciscando
chão de areia fixa
fora de mim, velava meu corpo
(onde eu estava?)
teu nome não me dizia nada
o seu latido guardava o meu em segredo
o cio a deixava inquieta
suspensa entre quatro dentes
meu corpo – uma massa fixa
sem qualquer resposta
um sonho apenas
você sorria de rabo solto
sentada na relva feito quem
abro os olhos
corpo ausente
continuo rindo – desperto –
rabo solto sem relva