Dante Gatto
Natural de São Paulo-SP, professor aposentado da UFMT e da UNEMAT, colaborador do Programa de Pós-graduação de Estudos Literários. Escreveu e acompanhou a montagem de seis peças de teatro: Os vencidos (1985); A noite dentro da noite (1986); A Criação literária (1988); Amar, verbo intransitivo - adaptação (1995); Retorno ao futuro: a semana de 22 (1996) e A voz do povo: 500 anos de história (2000). A peça A noite dentro da noite, em 1990, recebeu o Prêmio “Textos inéditos do interior. Ano 90” do Projeto “Oswald de Andrade de Dramaturgia”, promovido pela Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo. Publicou três livros de poemas: Poesias (1980); Unimultiplicidade poética (2005) e A Ferida e outros poemas (2015). Publicou vários prefácios e poemas premiados em diversos concursos literários.
CATIVEIRO
Quando deu por si já estava imobilizado e com a boca lacrada por uma fita adesiva. A última coisa que viu foi uma tatuagem, talvez um dragão ou um escorpião, na parte superior de um braço musculoso. Era um sequestro, não teve dúvida. Procurou se acalmar. Um cheiro azedo naquele carro, mas que não era de cachaça ou cigarro. Estes odores ele conhecia bem, mesmo combinados: lembranças da infância que vieram à tona de repente quando já desapareciam no passado remoto. Talvez fosse um sinal do fim. Imaginou que os sequestradores pediriam uma quantia que não haveria alguém neste mundo que se propusesse a pagar pela sua vida. Bem, deu para este tipo de pessimismo sob o impacto do medo. Precisava manter a calma.
Quando o carro parou ouviu as quatro portas abrirem-se ao mesmo tempo. Alguém lhe arrancou do banco traseiro do carro com desnecessária violência. Não tinha ímpeto para nenhuma reação. Os sequestradores deveriam saber deste fato óbvio, uma vez que até aquele momento demonstraram, digamos assim, muito profissionalismo.
Não entendeu o que acontecia, até se sentir sozinho e poder tirar a venda dos olhos e o adesivo da boca. Tinha mãos e pés presos por correntes como um presidiário. Conseguiu andar com dificuldade, encontrou um interruptor e pode ver – sob uma luz baça – onde estava: um cômodo pequeno, acarpetado, sem janela e com paredes e teto forrados de espuma acústica cinza. Ao mesmo tempo em que lhe veio um impulso de gritar teve a dimensão do quanto aquilo seria ridículo. Curioso que nunca antes se preocupara tanto com a própria imagem. Havia um banheiro, sem portas, com um vaso sanitário e um cano que deveria esperar um chuveiro. Tinha água. Tudo na medida para que não morresse antes do resgate. Encontrou o local da porta, mas não havia maçaneta. Poderiam ter-lhe deixado um colchão. Ficou matutando a razão pela qual não o fizeram, até que seus pensamentos foram interrompidos pela escuridão e viu a porta se abrir por conta da luz que vinha de fora. Agarraram-no com desnecessária brutalidade novamente e foi sedado com uma dolorosa injeção no braço.
Quando acordou não sabia por quanto tempo havia dormido. Lá estava um recipiente de plástico com algumas maçãs. Bebeu muita água no cano do banheiro. Até pensou em comer, mas viu uma barata gorda passeando sobre as maçãs. Voltou a dormir. Acabou por dividir as maçãs com a barata. Gosto e cheiro bastante peculiares. Seus pensamentos tortuosos só eram interrompidos pela rigorosa rotina: o sono contínuo, a porta se abrindo, a sede incontrolável, a dificuldade em tomar banhos, as maças e a barata. Acabou perdendo a noção do tempo, não conseguia mais contar os dias que antes fazia por meio da entrega da maça. Se pudesse, teria se matado.
Rondava-lhe pensamentos sinistros sobre o que estaria acontecendo lá fora por conta do seu desaparecimento. Como estaria a esposa de quem guardava já discreta distância... os filhos, a empresa? Teria alguém seriamente se preocupado com a sua situação? Passavam-lhe pela memória imagens longínquas da mocidade de penúria e vieram à superfície, novamente, muitas lembranças que pareciam sepultadas há muito. Da autotortura pelos pecados irreparáveis e a sensação do fracasso em não ter valorizado o que agora sentia como fundamental passou, paradoxalmente, a experimentar uma enorme alegria de viver. Foi-lhe boa, afinal, a vida.
Não tinha ideia de que hora seria quando acordou já acostumado com o cativeiro. Ao virar a cabeça encostou de leve a testa no recipiente com as maçãs e – apesar do escuro – viu muito próxima dos seus olhos a barata paralisada em decúbito dorsal, agitando as perninhas, tentando se por em pé. Lembrou-se, por conta do cheiro, que aqueles doces que comia quando criança, comprados na vendinha com dificuldade – os momentos mais incríveis e maravilhosos de sua vida – tinham sim cheiro e gosto de barata. Sorriu. Felicidade desconcertante. Salvou, por fim, a barata daquela situação com o nariz. Sim, com o nariz ele desvirou a barata e a viu desaparecer no escuro. Foi quando ouviu o estrondo do abrupto arrombamento da porta. Pela luz que adentrava, com os olhos doendo, viu entre ele e um policial a barata olhando-o com grandes olhos de ternura. Quis falar, mas as palavras não saíram por mais que se esforçasse. O policial, pensando em tranquiliza-lo, sorriu, disse que tudo havia terminado e, acidentalmente, pisou na barata.