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Dante Gatto
Natural de São Paulo-SP, professor aposentado da UNEMAT, colaborador do Programa de Pós-graduação de Estudos Literários. Escreveu e acompanhou a montagem de seis peças de teatro: Os vencidos (1985); A noite dentro da noite (1986); A Criação literária (1988); Amar, verbo intransitivo - adaptação (1995); Retorno ao futuro: a semana de 22 (1996) e A voz do povo: 500 anos de história (2000). A peça A noite dentro da noite, em 1990, recebeu o Prêmio “Textos inéditos do interior. Ano 90” do Projeto “Oswald de Andrade de Dramaturgia”, promovido pela Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo. Publicou três livros de poemas: Poesias (1980); Unimultiplicidade poética (2005) e A Ferida e outros poemas (2015). Publicou vários prefácios e poemas premiados em diversos concursos literários.

UM ABRAÇO ANTES DE MORRER

Resolvi respirar da turba de jovens e sai para a calçada. Não sei o que fazer, na minha idade, em evento de jovens. Ainda me convidam por conta de anos no magistério superior. Ela estava ali com um sorriso aberto que me magnetizou. Comprimentos, comentários sobre o tempo, a lua, a rua...


– “Ninguém se torna vegano impunemente”, desferiu a mocinha a certa altura da nossa conversa, sem que eu soubesse como a conversa seguiu para aquele assunto. Que bonitinha, pensei comigo. 


– “Parei de fumar, também”, acrescentou ela. Perguntei-lhe se fumar comprometia a condição vegana. 


– “Não, necessariamente. Eu acho que acaba sendo uma consequência”. 


Ela sorriu. Era a coisa mais linda de se ver. Há poucos metros de nós estava a sua galera, como dizem, conversando alegremente, mas ela ficou ali, sorrindo para mim. 


– “Um dia, ao cortar um bife, senti um tremor nas mãos e a carne me desceu amarga”. Enquanto falava ela olhava as duas mãos que levou a altura do rosto. Trazia uma bolsa de pano branco a tiracolo. Coisa muito simples.


– “Minha mãe percebeu e não me obrigou mais a comer carne. Depois foram os outros produtos de origem animal que eu me livrei: o ovo, o leite, o queijo, o mel...” 


– “Mas você está muito magra”, rebati, mas ela pareceu ignorar o meu comentário. De fato não estava magra. Era perfeita. Parecia totalmente envolvida em me convencer. Só tinha olhos para mim. Pensei comigo: “vai dar certo”. 


– “Foi pouco depois daquela época, eu tinha doze anos, que me deu vontade de sofrer”. Risos. “Toda oportunidade que me aparecia ia ver os animais em sítios e fazendas, porcos, vacas... e tentava contato com eles. Impulso irresistível de abraça-los. Por vezes, quando possível abraçava mesmo. Tentava não chamar a atenção das pessoas, porque chorava muito por vê-los ali escravizados, sendo torturados e aguardando a inevitável morte”.


– “Nossa, que exagero”.


– “Pois é”, continuou ela, “percebi minha solidão e me acostumei a ela, afinal sentia que era uma causa maior”.


Quando ela disse a última frase tive um impulso indistinto de lembrança. Talvez já a conhecesse. Era preciso, pois, resistir a uma investida mais impetuosa.


– “Aos poucos, fui encontrando quem partilhasse os mesmos ideais e a utopia se revelou esperança”. 


Novamente, a impressão que já a conhecia. Fiquei estudando, mesmo assim, uma maneira de concretizar a aproximação. Era tudo o que me interessava. E sem que eu esperasse, ela me abraçou. Percebi que não precisaria adiantar nada, nem carregar a culpa de seduzir alguém pouco mais que uma adolescente. Parecia tão segura, tão consciente. Ela se afastou um pouco, segurou as minhas mãos, tinha uma fugidia lágrima no rosto.


– “Apareça lá em casa. Faz exatos dez anos que você nunca mais nos visitou”.


Exatamente, neste momento, que recuperava a lembrança, estacionou ao nosso lado um carro branco e saiu dele um velho amigo que, de fato, há muito tempo eu não visitava. A jovem vegana era sua filha. Eu praticamente a vi nascer e acompanhei o crescimento, pelo menos, nos seus dez primeiros anos de vida. Ele desceu do carro e reforçou o convite para visita-lo. 


Fiquei ali um tempinho, vendo o carro dobrar a esquina. Conforto inexplicável. 

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