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Danilo Fochesatto

Possui graduação em Tecnólogo em Processamento de Dados pelo Centro Universitário de Várzea Grande (2002) e Bacharelado em Direito pela Universidade de Cuiabá (2016), devidamente inscrito na OAB, seccional Mato Grosso. Tornou-se, em 2013, servidor da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT e, a partir de 2015, passou a atuar no Escritório de Inovação Tecnológica - EIT. Atualmente é mestrando do PROFNIT - Programa de Pós-Graduação em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para a Inovação.

UMA CARTA

Prezado amigo, escrevo-te porque sei que me entenderás. Mas também o faço para tirar-lhe a preocupação que cercou meu desaparecimento. Então vamos lá! Eu, enfim, estou bem. E você? Espero, dentre outras coisas, que ainda sejas bom em rememorar. A lucidez é a alma do negócio, meu nobre. Recorde-se, portanto, daquela madrugada em que conversamos lucidamente no Obelisco do Centro Geodésico. Refiro-me àquele bar em que fomos quando saímos do casamento de teu irmão para comprar não me lembro o quê. Era quase noite, quase dia, e percebemos que a insignificância das flores era algo de beleza magistral. Aliás, foi ali, junto de ti, que me decidi. Só havia uma coisa a ser feita, e, sem ressentimentos, eu a fiz.


Assim, trouxe minha mudança para Ushuaia, a cidade do fim do mundo. Graças aos idiomas que arranho, arranjei um emprego vulgar e sem muitas obrigações na rede de serviços de turismo. Não foi rápido, mas em algum momento conheci alguém. Entre meditações deformadas e excessos alcoólicos em noites que percorria a cidade em busca de algo que nunca alcancei, eu a encontrei. Quando passamos um pelo outro, senti uma fisgada e, uma vez que o tempo foi sobrestado, parei. No meio da rua, que parecia o fundo do rio, apertei as pálpebras com força suficiente para gerar fractais de pontos coloridos animados sobre o fundo negro da consciência, bem ali, logo atrás dos olhos. De súbito, virei-me como se tivesse perdido algo valioso no trajeto. Ficamos cara a cara, com falta de ar. A partir daí todas as portas foram abertas para nossos sorrisos.


Veja só, meu caro. Toda vez que estou diante de alguém, lhe estendo a mão em cumprimento. Quando as apertamos, eu sinto que nós, os homens, somos horrivelmente impotentes. Mas é impressionante o quanto isso deixa de ser verdade quando estamos diante de uma mulher. Que atuação, a dos hormônios! Considerando o frenesi dessa química, ela me subjugou. Por ora, posso dizer que mergulhei nessa relação na serena certeza de que não existe outra possibilidade tão compatível. E quer saber mais? Nossos beijos batem recordes climáticos. Nossos abraços são de proporções oceânicas. Ah, ela também sabe dividir a conta como ninguém; tim-tim por tim-tim, sem tirar nem por. Tem, ainda, um perfume misterioso que mistura grama cortada, terra revirada, maresia e suor. Além disso, ela fica absolutamente deslumbrante quando fora de si. Em erupção de raiva, as maçãs como magma e os cabelos em cascata de lava. Ao mesmo tempo, sua natureza se assemelha a perfumada seda, de tão mansa e tão terna. Gosto dela. Gosto muito dela, meu camarada. Gosto quando ela diz coisas que ninguém sabe se são verdades ou mentiras. E quando a ouço chegar em casa, voando feito um passarinho que volta pro ninho, eu me transformo em minhoca. Não tem jeito. Com ela por perto, não faço nada senão a seu favor.


Depois de alguma insistência, fui conhecer sua família durante o We Tripantu, que é a celebração do ano novo deles, descendentes dos Mapuches. Estavam lá a sogra, o sogro, os tios e as tias, um monte de primos e primas, e os seus irmãos capetinhas. Como se não bastasse, a casa tinha um papagaio de estimação. Curioso é que ele não falava corretamente, apenas latia. A senhora sua mãe me explicou que era um bicho revolucionário a protestar contra a sociedade do acúmulo. Mas eu não acreditei muito nessa mulher; tudo o que ela fazia era pensando em muday, não nos outros. Honestamente, minha sogra é uma curandeira fingida de marca d’água maior. Em outras palavras, meu esquema é com sua filha. Nós, enfim, nos casamos e somos felizes nessa cidade. Aqui, nossa sinceridade não é lastimosa. E por muitos verões nossa união tem funcionado como a beleza inalcançável das velhas pinturas.


Nada, entretanto, perdura por muito. No último outono, uma mudança em meus sentimentos se consolidara. Eu tenho de continuar descendo para o sul. Então, em breve, desceremos; sempre ao sul e além-mar. Dessa vez, levarei um harmonioso amor na bagagem. Perdoe-me por não poder lhe dizer aonde iremos. Queremos discrição, quase anonimato. Queime essa missiva no cinzeiro e polua o Cuiabá com as cinzas ao terminar a leitura. Você não requer disso como lembrança. Por ter ficado, você não está obrigado a escrever sobre aqueles que se ausentaram. Ai de nós, os que passam! Après nous le déluge. Ainda assim, sinto-me tão perto de ti quando sonho contigo a seis mil quilômetros de distância. Por isso lhe peço: deseje-nos felicidade tanto quanto lhe tenho apreço. E se te escrevo, caro conterrâneo, é em tom de despedida que o faço. Pois as árvores torcidas que aqui temos possuem a mais intensa força. Ao entardecer, suas sombras são como iscas indefectíveis para nossas alminhas famintas. Às vezes pode parecer que não, mas sim, é verdade: árvore só respeita vento; quando ele passa, ela, por educação, desvia.


Tout court,


RPSVP

© 2019 - Revista Literária Pixé.

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