Lucas Rodrigues
É jornalista. Coordena o Jornalismo do Governo de Mato Grosso e é autor do livro “Pirotecnia”. Gaúcho de criação, só virou gente mesmo (ou quase isso) em Cuiabá, onde mora desde 2011. Ainda não sabe se o que escreve é crônica, conto ou uma mistura desarmônica dos dois.
CÂNCER
Conto proibido para neuróticos
- Boa noite senhor, boa noite senhora. Já escolheram?
- Vou querer esse Capeletti in Brodo e uma taça de Valpolicella.
- Ótima escolha senhora. E para o senhor?
- Estou com muito receio desse menu, não consigo escolher. O que você sugere?
- Temos ótimos pratos com macarrão, como o Capeletti que a sua esposa pediu.
- Nem pensar. Trigo é uma bomba. Viu o caso do homem que morreu depois de comer macarrão?
- Que tal uma carne de cordeiro?
- Com papelão ou sem? Não confio. Um conhecido comeu uma carne mal passada, tinha uma bactéria que subiu para o cérebro e ele morreu.
- Temos uma lasanha magnífica aqui na página seguinte...
- Lasanha vai leite, tô cansado de ver notícia de leite adulterado com soda cáustica, com solvente de tinta com isso, com aquilo. O leite normal já é cheio de sangue e pus...
- Um arroz à grega, que tal?
- Sabia que a forma como o arroz é cozinhado pode matar, por causa do arsênico?
- Batata rústica?
- Câncer.
- Eu sugiro então um prato mais leve, uma torrada com foie gras?
- Torrada? Puro câncer.
- Pode ser pão normal então?
- Diabetes e câncer.
- Um doce light, tipo pudim...
- Você quer me ver fazendo ponte de safena três vezes por semana?
- Vamos para as frutas então, quem sabe uma manga com calda carameli...
- “Estudante de 12 anos morre após comer manga”. Notícia do G1.
- Banana?
- Dá prisão de ventre.
- Maçã...
- Muito açúcar, agrava a gastrite.
- Um caldinho de feijão...
- Humm, dá gases. Mas acho que vou abrir uma exceção.
- Ótimo!
- Espera aí, tenho como acompanhar o preparo na cozinha?
- Não, senhor, lamento, mas somente os funcionários podem ficar na cozinha.
- Mas como vou atestar a qualidade? E se cuspirem? Viu a notícia do rapaz daquele fastfood que passava o pênis nos lanches? Da moça que jogava a comida no chão e colocava no prato de novo? Da chinesa que enfiava agulhas dentro dos morangos colhidos e teve gente que até morreu ao comer?
- Entendo a sua preocupação senhor, é que são regras da casa. Que tal escolhermos sua bebida primeiro?
- Perfeito. Mas nada de refrigerantes, ou devo chamar de câncer em lata?
- Sem problemas. Vai acompanhar sua esposa na bebida? Temos excelentes drinks.
- Nunca. Não querendo colocar em dúvida o restaurante, mas recentemente a Polícia desbaratou uma quadrilha que falsificava bebidas e vendia no Brasil inteiro. Uísques caríssimos em restaurantes e casas noturnas renomadas eram puro xarope cheio de substâncias tóxicas. Não sei como ninguém morreu ainda. Na Grécia, você viu? A menina comprou um drink numa rave de uma ilha paradisíaca e agora está cega.
- Sim, sim, mas acho que suco de laranja não tem erro!
- Faz mal para os rins e agrava o diabetes. O recomendado é comer a laranja, mas não fazer suco.
- Limão então?
- É, pode ser. Abaixa a pressão um pouco, mas é o que temos né?
- Com açúcar ou adoçante?
- Você quis dizer “com câncer ou com mais câncer”, não é?.
- Sem nada então. Sem problemas.
- Isso... se bem que sem nada vai ficar muito azedo. Vou ficar só com a água mesmo.
Garçom traz a água. Ele vai até o carro, liga o fogareiro portátil, coloca o líquido na panela, ferve, joga na caixa térmica cheia de gelo e, após dez minutos, devolve a água para o frasco e volta à mesa.
A taça d’agua é erguida de um lado, o vinho do outro. Os recipientes sutilmente se tocam.
- Saúde!, diz ele, com um largo sorriso de satisfação, antes de inundar os 30 kg de seu corpo com a água potável.