top of page
Lucinda Persona - foto.jpg

Lucinda Nogueira Persona

Escritora, bióloga e professora, nasceu em Arapongas, PR, em 11 de março de 1947. Vive em Cuiabá. É formada em Biologia pela UFMT e mestre em Histologia e Embriologia pela UFRJ. Já publicou os livros de poesia Por imenso gosto (1995), Ser cotidiano (1998), Sopa escaldante (2001), Leito de Acaso (2004), Tempo Comum (2009), Entre uma noite e outra (2014), além de publicações para o público infantil e colaborações para revistas, jornais e outros periódicos.

O SABOR DA CHUVA

Como se nada pudesse ficar a salvo
a tempestade se aproxima
alterando a vida
    desejando almas
O vento pervaga vestido de terra
A rua fica deserta
Os trovões sacodem a nuvem toda
e sua escuridão despenca em água cristalina

Por voracidade à chuva
colo-me à vidraça
As mãos apaziguadas, espalmadas
As unhas rompendo a seca luz do vidro
O rosto achatado até os ossos
A boca aplastada
e a língua em sua angústia – de dizer

As palavras se arrastam como com sede

Num ajuste de intenções
o vidro entreabre seu íntimo ao meu modo disforme
(que estranha, esmagada mistura)
É de espantar o que ocorre
    em movimentos vivos e manobras

Quantas vezes não somos
faces de loucura
(meio-sorrindo
meio-chorando)
a lamber a chuva.

 

(Inédito)

ESTAÇÃO RODOVIÁRIA

Ruídos. Fumaça. Ônibus chegando, ônibus partindo. E as incontáveis faces do anonimato. Fantasmas difusos na aridez das plataformas. Criaturas sonolentas nos bancos gordurosos. Estação rodoviária. Nuvens ácidas e azedumes. Vapores de frituras que nunca se desvanecem. Tensão crescente das esperas. Poder-se-ia falar numa manhã de poros entupidos, não fosse inútil a comparação. As nuvens, erguidas como clara em neve, em muito reduzem o azul do céu. Cândidos são os pombos misturados às formas reais, desfiguradas, ruflando sobre o piso sujo, despencando das traves e vigas empoeiradas. As revoadas fulminantes. Os pombos nunca serão conteúdo de valor incerto, nem imagens comuns nas poças de marasmo. Estação rodoviária, de vez em quando, atravessando meu caminho, consequência de um vertiginoso ir e vir pela cidade. Mais do que o edifício enorme, a recordação nasce da realidade. Terminal rodoviário, na trama do tempo, surgindo de repente num momento passageiro. Lugar sombrio de chegar e de partir. Um dia, ali, nossa despedida comum, superficial, sem desespero. Cada um de nós com um sorriso bem menor do que o necessário.

bottom of page