Cristina Campos
Doutora em Educação (USP, 2007); mestra em Educação (UFMT, 1999); especialista em Língua Portuguesa (UFMT, 1989), Semiótica (UFMT, 1995) e Semiótica da Cultura (UFMT, 1996). Professora aposentada de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, pelo IFMT – Campus Cuiabá. Ocupa a Cadeira 16 na Academia Mato-grossense de Letras. É autora das seguintes obras: Pantanal mato-grossense: o semantismo das águas profundas (Cuiabá: Entrelinhas, 2004), Conferência no Cerrado (Tanta Tinta, 2008), Manoel de Barros: o demiurgo das terras encharcadas (Carlini & Caniato, 2010), O falar cuiabano (Carlini & Caniato, 2014), Bicho-grilo (Carlini & Caniato, 2016) e Papo cabeça de criança travessa (Tanta Tinta, 2017).
FLUTUAÇÕES DE UMA PENA QUE VOA AO ROMPER O CASULO
De 09.02 a 29.03.2019, a Galeria do Sesc Arsenal hospeda a exposição ‘Metamorphosis’, da artista plástica Regina Pena. De 400 trabalhos selecionados pela autora com o auxílio da curadora Ruth Albernaz, foram impressos e emoldurados 40; os outros são projetados em suporte digital, onde o apreciador pode contemplar, em pixels deslizantes, as séries que ampliam o que está nas paredes – brancas, do retângulo do espaço, e vermelhas, dos painéis móveis que criam um contraste interessante e valorizam as obras enquanto suporte. As 40 gravuras digitais foram produzidas em Tablet, com impressão FineArt sobre papel Hahnemühle. Há que mencionar também o importante estímulo e apoio da editora Maria Tereza Carrión Carracedo a esta fase de produção da artista.
Ao percorrer o sentido anti-horário propositalmente tracejado pelas obras, o observador se depara com uma mostra contendo 14 séries: Natureza (4 obras); Flutuação (3); Vasos (2); Vasos e Flores (1); Memória Afetiva (3); Lavadeira Beira-rio (4); Rendas e Bordados (2); Abstrações (1); Geométricos (1); Fragmentos (2); Mulheres (3); Sobre a Cegueira (4); Política (3); e Metamorphosis (9 obras, sendo 7 mais 2 ampliadas).
No início do percurso da exposição, há mais três obras de um período anterior de sua produção, constituídas por assemblages com madeira e gravuras, dos acervos da galeria Arto, Casa das Molduras e Maria Augusta Speller. Lembro-me de Regina, em Chapada dos Guimarães-MT, cercada por torres de madeiras-retalhos de molduraria e serralheria que constituíam parte da matéria-prima desses trabalhos. A casa inteira se tornava um laboratório artístico. Ela produzia febrilmente, movida por uma paixão avassaladora. Seu surto criativo era intenso, algo gostoso de acompanhar, pois, a cada semana, belas peças materializavam-se como que por mágica.
Nas paredes da galeria, também se encontram textos da curadora Ruth Albernaz e da crítica de arte Aline Figueiredo, além do poema ‘O Ingazeiro’, de escolha e autoria da própria Regina, que tem se revelado uma poetisa de mão cheia. Questionada sobre a presença do único poema na mostra, afirma que “ele também fala de transformação”. Ei-lo:
O INGAZEIRO
Num território concreto
Um preguiçoso ingazeiro
Adolesceu seu tronco pendido
Justo a um palmo do chão
A cada estação do tempo
Debruçou-se mais lascivo
Feito um sinimbu num galho
Numa quebrada lunar
Em plena maturidade
Floresceu todo nevado
Apinhado de vazios
Antropofagia
Ante gesto tão generoso
Deleitou-se a guardiã de fronteiras
‘Metamorphosis’ é a metáfora que traduz, essencialmente, o recente processo de vida de Regina Pena que, acometida por esclerose múltipla, teve sua alma (liberta e sensual) gradativamente enclausurada (ou encasulada) no próprio corpo. No entanto, apesar da atual dificuldade de locomoção e coordenação motora, o Tablet propiciou-lhe continuar se expressando plasticamente, daí as centenas de gravuras digitais que nos surpreendem, pela beleza e criatividade.
Nota-se que as séries se comunicam, interpenetrando-se: a mesma energia que impulsiona a mão feminina a tecer fios amarra os casulos; mumifica alguns seres; cavuca a terra e expressa um grande amor pela Natureza, transbordante em formas, folhas e frutos; borda panos; amplia a realidade tridimensional de tal forma que a vira do avesso em fragmentos; passeia por tragédias envolvendo destruições do meio ambiente; registra cenas e paisagens regionais que sensibilizaram o imaginário da artista. Ao descascar as camadas da cebola-casulo, representa várias mulheres até chegar aos autorretratos, como que a buscar incessantemente se (re)conhecer em novas formas e romper de vez a crisálida, transcendendo-se: a semente germina, o casulo se rompe e o corpo se deixa, até flutuar em voo livre e mergulhar em fluxos interdimensionais.
Um traço estilístico marcante de Regina, digno de nota, é o modo como equilibra magistralmente as cores quentes e frias, escolhidas com elegância e carregadas de sensualidade. Sua paleta mostra quão madura a artista é. Chama a atenção o vermelho das flores que circundam os casulos, como sangue que brota e jorra num fluxo espiralado dos cortes na pele sensível das gravuras.
O amor pela Natureza suporta o conjunto da obra. Quem nela já viveu encostado, sobretudo na infância, pôde contemplá-la e certamente aprendeu a encarar com mais naturalidade os ciclos da vida, mutatis mutandis. É o caso da amiga.
Salve Regina!