Carla Kinzo
Nasceu em São Paulo. Publicou Satélite (Quelônio, 2019 – II Edital de Publicação de Livros da Cidade de São Paulo), Eslovênia (Megamíni, 2017), Cinematógrafo (7Letras, 2014), Matéria (7Letras, 2012 – ProAC Publicação/2011), o infantil Grão (Pólen, 2015) e a plaquete Marco zero (nosotros editorial, 2018). É doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP, dramaturga e atriz.
não cai, flutua no espaço
suspenso pelo ar quente o poema
longe das mãos um satélite
fragmento em pleno voo
içada a estrutura no nada
navega em câmera lenta
corpo moroso, incendiado
pelo hálito furioso
febricitante
de quem tenha soprado
em seu interior
para a Maria Clara
Tenho lido cartas no lugar de livros
no lugar de placas
nos vagões de trens dentro de ônibus
tenho lido cartas é por isso
não me encontro nos lugares
tenho me perdido muito
errado pontos a descer
ruas esquinas
tenho lido muitas vezes a mesma carta
que descreve um lugar
insistentemente
para alguém da vida
desse alguém que a escreveu
esta carta não enviada anda comigo
pela cidade no lugar de um mapa
refaço com o dedo (como se o dedo fosse
a ponta da caneta que não carrego) o desenho
da letra que pergunta
se não há lugar, para onde ir?
tenho lido muitas vezes esta pergunta
enquanto atravesso a cidade e não encosto
a cabeça na janela ou fecho os olhos
ou olho as pessoas caminharem
elas quase nunca carregam cartas
no lugar de celulares bilhetes de metrô
eu sim tenho esquecido os bilhetes
e às vezes o endereço de volta
só para ficar mais tempo nos ônibus
dando voltas até que escureça
lendo muitas vezes a sua carta
no lugar de tornar a casa
FOME
talvez um pássaro voando muito alto
não veja mais sua sombra
e se sinta livre
repleto
de luminosidade
talvez um besouro dando voltas
em uma lata
ache que tenha caminhado muito
ido muito longe
até o outro lado
da fronteira
de alumínio
talvez pulando a hora de jantar
eu tenha salvo a mim
da sua falta
mas quando a barriga dói
de madrugada
sou o besouro
a quem alguém deu um tapa para fora
da lata
acho que sonhei com um lustre
talvez verde, talvez azul
acho que o vi há alguns dias
ou talvez tenha imaginado isso
eu num ônibus vendo o lustre
perfeito para o canto da sala
em que te escrevo no escuro
e no excesso de luminosidade
vinda do teto paredes janelas
um lustre colorido, talvez vermelho
poderia reparar o verso
mal cortado o excesso a falta
a letra disforme do sono
a embriaguez na tinta da velha
caneta sem tampa
o que te escrevo se parece
com essa tampa esquecida
acho que é por isso
tenho sonhado com o lustre
com palavras que possam
anteparar certa luz
mais um dia como os outros não fosse
esse modo em que às vezes a tarde arrasta
janela adentro qualquer coisa marítima
se a sala fosse um navio afundando
devagar a noite avançaria
fôssemos peixes e a casa um aquário
nenhum movimento seria
sem resistência, nos moveríamos
mesmo assim em direção a lustres
interruptores, mas antes que as lâmpadas
se acendessem douradas
seríamos algas