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Claudia Zortea
É graduada em Letras, professora, é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – PPGEL/UNEMAT.

DE DORES E SILÊNCIOS: O QUE DIZ E COMO DIZ O  NOVO ROMANCE DE EDUARDO MAHON?

Publicado pela editora Carlini & Caniato, em 2020, Eles não podem tirar isso de mim é o 7º romance do escritor e crítico literário contemporâneo Eduardo Mahon. A narrativa ligeira, fluida, apresenta uma narradora personagem que compartilha suas memórias da adolescência, tempo conturbado, cheio de dores, traumas, violência, aventuras e cumplicidade. A obra é estruturada em 40 partes curtas, sendo a primeira intitulada “Por que eu conto?” e a última “A cura”, quase como uma pergunta e a resposta. Todos os títulos são bem curiosos e mantêm uma relação subjetiva com o capítulo.
A narradora, da qual não se sabe o nome, está num quarto branco, possivelmente uma clínica psiquiátrica, perturbada com seu presente e passado. Desse espaço, sua memória leva o leitor aos tempos vividos, uma parte recortada da adolescência, quando foi morar com os tios, depois de ter perdidos os pais num acidente de carro. Nesse período, a menina dividia-se entre a casa, escola e a rua. Ao mesmo tempo em que lembra, ela faz uma autoanálise, na tentativa de interpretar e aceitar suas vivências, reformulá-las.
Em casa, acompanhava a rotina de um casal decadente, que mantinha uma relação pacata e com poucos afetos, orquestrada pelas obrigações. A tia, resignada, vivia em torno do marido, tratava a menina com afeto, mas não conseguia estabelecer, com a sobrinha, a cumplicidade necessária para alcançar o universo adolescente. O tio era um fumante intenso e leitor assíduo de jornais, “uma estátua atrás dos jornais” (p. 09), mimetizado ao móvel da sala do qual quase não saia de cima, a poltrona. Um personagem que causa profundo asco no leitor ao abusar sexualmente da sobrinha, sem que ninguém soubesse, um segredo confesso pelas memórias da narradora. Algo normal, chegou a pensar na época, numa tentativa de entender o que sofria.

A maçaneta do meu quarto girou e o tio Alberto entrou devagar. Eu fingi que dormia. Ele não recuou. Sentou-se na cama e passou a mão pelo meu cabelo. Depois me descobriu e colocou a mão por dentro da minha camisola, palmilhando meu corpo até a barriga. Deve ter percebido que parei de respirar. Inclinou o corpo para frente a fim de que a mão chegasse até às minhas pernas. Eu tremia. Ele não se importou. Forçou a entrada e conseguiu meter um dedo em mim. Não consegui gritar. Tinha medo de acordar minha tia. Medo do que ela iria pensar [...] (p. 47)

Na escola, pública, a menina possuía laços fraternais com alguns colegas, com os quais dividia também o espaço da rua, em momentos de descontração e rebeldia. Nenhum dos amigos se encaixava adequadamente à escola “algo fervia” (p. 10) dentro deles, eram adolescentes “difíceis”, que praticavam vandalismo tanto na escola quanto nas ruas. Em contrapartida aos atos distorcidos dos adolescentes, a obra explora suas experiências dolorosas. Paulinho, por exemplo, sofria em decorrência da gordofobia e juntava-se à turma para se proteger, Jonas era vítima de violência física doméstica, tinha uma cicatriz acima do olho por causa de uma pancada da fivela do cinto do pai. Marcelo, temido por sua hostilidade e inconsequência, chegou a ir para um reformatório.
Há trechos nos quais a narradora expressa a clareza que ela e os colegas tinham da própria condição de alunos de escola pública. É cortante a revolta dos adolescentes em relação à escola e ao universo ao qual faziam parte. A obra é um painel da sociedade contemporânea e a escola faz parte desse desenho dolorido. Nota-se, no romance, uma espécie de realismo que, na obra, volta-se também para a escola pública, tendo em vista a limitação do olhar da personagem, mas que na verdade aponta para um problema social que culmina no espaço escolar.

Nunca gostei daquela escola. [...] O lugar era mau. Nas paredes, havia tatuada a raiva de crianças de muitas gerações. Não havia nada ali, além de mesas e cadeiras. Sabíamos que o futuro não alcançaria nenhum dos alunos, nem o Paulinho, que era o melhor de nós. O que fazíamos era matar o tempo. Deixar a vida passar. Ficávamos depositados durante o dia. (p. 16)
Quem estudava naquela escola já estava reprovado. Uma reprovação diferente, antecipada. Não tínhamos chance. Ninguém sonhava com a faculdade. Paulinho, talvez. Medicina? Que piada. Mas ele queria. Dizia muitas vezes que sonhava usar jaleco com o nome bordado. Paulo Rogério Marques. No pescoço, carregaria um estetoscópio como nos filmes. Por mais que fosse o melhor aluno, não era o suficiente. Nunca era. O melhor daquela escola significava o pior de qualquer outra. (p. 80-81)

Nas ruas de Brasília, a menina e os colegas perambulavam, explorando o espaço livre e colocavam em prática alguns atos de vandalismo. Nesse caminho público, ela encontrou um dos personagens mais curiosos do romance, Caco, um músico decadente e enfermo que foi para Brasília e se apresentava em festas formais, tocando jazz com sua banda. A história de Caco é brevemente contada durante as visitas ao seu esconderijo, um buraco escuro num viaduto da cidade. Os encontros entre a menina e o músico, sem dúvida, são as partes mais fascinantes desta história, pois a amizade dos dois cativa o leitor. Os encontros deles, pessoas feridas pela sociedade, é um alento para ambos, como uma cura.
É nesta relação com Caco, que o romance incorpora um tipo de trilha sonora, a embalar as aventuras dos dois amigos, ao som do jazz que saía do trompete do músico. Compreende-se, nestes enlaces, o título do romance, inspirado numa das músicas que Caco toca, “They can’t take that away from me”, de George Gershwin. Música esta que, por sua vez, estabelece relação de intertextualidade com a obra, pois a narradora entende que sua memória é a única coisa que não pode ser tirada dela, é só sua, intrasferível, única e especial. Tanto que ela não externa suas lembranças às pessoas da clínica, porque tem medo que arrancarem isso dela.
Os encontros secretos entre a adolescente e Caco tornam-se parte dominante da narrativa e criam grande expectativa no leitor. É a promessa de que mesmo no caos, há esperança, amizade e cumplicidade. Ela cuida dele e ele, em troca, fala sobre músicas, conta histórias, orienta. Mas, como um leitor de Mahon imagina, os desfechos das obras deste escritor são sempre surpreendentes e nem sempre felizes.

O pano de fundo das memórias narradas e do presente da protagonista é a vida urbana contemporânea, aos poucos apresentada, cheia de dores e caos em seus diversos espaços, ocupados por pessoas marginalizadas e silenciadas. A voz da narrativa é silêncio, pois o que é contado, no âmbito da narrativa, não é dividido com mais ninguém. Há na obra uma angústia irresoluta, de uma mulher que não alcança o sossego final e que ainda tenta a conciliação com a memória, a expressão como cura. Talvez, as memórias ainda não estivessem prontas para sair, e nem saem, pois tudo fica no âmbito do pensamento. Mas elas chegam até nós, e chegam imaturas, numa escrita fragmentada, com frases curtas e com excesso de lições, que chegam a saturar o leitor.

Quem mora de favores não pede mais favores (p. 59)
Hoje eu só sei que fugir só é possível se nascer de novo (p. 60)
Só se vive em paz desconhecendo o que há de pior nas pessoas (p. 62) O silêncio é protesto. Mas é também medo. (p. 64)
Os homens pensam da mesma maneira. Eles são assim.Nascem para  lutar. Os fracos são culpados pela própria fraqueza (p. 66)
A maldade coloniza. Começa com um pequeno fungo e cresce rápido até chegar ao coração (p. 68-69)

A escola é um ambiente inflexível e incompatível com os jovens personagens, o lar, ao invés de trazer aconchego, traz medo e a sociedade, de modo geral, vai levando aos poucos para a margem os inconciliáveis. Desta forma, o livro causa um mal-estar e tira-nos do conforto ao convocar à reflexão sobre estes espaços nos quais vivemos no dia a dia. Ela faz pensar sobre a dor de uma sociedade, que pode ser a mesma do leitor, ao retratar a violência na escola, nas casas, nas ruas, nos hospitais.
Entre as várias análises possíveis, aponto aqui a abordagem sobre os espaços. O espaço físico é a cidade, a casa dos tios, o quarto branco na clínica psiquiátrica, a caverna de Caco, a escola. Mas existe também uma geografia do ser humano muito bem explorada: o lado de fora e o de dentro, e é justamente esse espaço interno, a memória, que não pode ser tirada da narradora, nem de Caco, nem dos colegas da escola. É possível e necessária uma análise mais aprofunda desse aspecto, considerando a relação entre esses lugares da cidade e os lugares da memória.
Mahon é um dos principais nomes da literatura contemporânea de Mato Grosso, possui mais de vinte obras publicadas. Seu entusiasmo e avidez para escrever são notáveis, um leitor de Mahon tem sempre algo fresco para apreciar. Mas, assim como a “velha” canção apresentada neste romance se mantém significativa, é  bom também para o escritor elaborar textos  que ultrapassem o tempo e dialoguem de forma renovada com o presente, independentemente se esta foi a pretensão ou não. Quem determina tal vitalidade é o leitor, o crítico, o público. Será Eles não podem tirar isso de mim um destes textos? Se isto acontecerá ou não, o futuro dirá, mas, no cenário do presente, o público tem uma bela obra em mãos.


MAHON, Eduardo. Eles não podem tirar isso de mim. Cuiabá: Calini & Caniato, 2020.

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