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Clark Mangabeira
Carioca cuiabano, é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e professor adjunto de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Graduado em Direito, Letras e Ciências Sociais, é escritor de ficção, tendo publicado contos e poemas em diversas revistas literárias e acadêmicas, e escreve enredos das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. 

O GRILO

tinha um grilo verde no teclado. ele chegou de repente, pulando pra dentro do quarto pela janela escancarada de céu azul. era verde mesmo e repousava sobre a letra m sem qualquer cerimônia. nunca soube quantas asas um grilo tem, nem quantas patas, mas são sinal de boa esperança ou de qualquer outra coisa boa. não sei o que ele fazia na letra m – nem o porquê de não ter escolhido outra letra. então ele me olhou. também não sei quantos olhos os grilos têm, porém sei que eles me fitavam. e me fizeram lembrar da primeira vez que dormi com alguém. eles me olhavam e eu ia lembrando. uma última conversa que não sabia ser a última, os amigos na penúltima roda de violão. a bebida vagabunda que nunca mais encontrei pra vender e que só eu sabia que era boa. o grilo me olhava e fazia o favor de dizer coisas. com os olhos. quantos quer que fossem. mostrou uma viagem pra araruama milênios atrás, o doce de cupuaçu da minha avó, o câncer metástico do meu pai (e ele agonizando sozinho na uti), o parkinson do meu avô e uma enxada que tinha cabo envernizado encostada numa laranjeira sem flor de um sítio que já tivemos. ele também me mostrou o céu lilás do ácido que eu tomava quando moleque, tudo muito íntimo, muito meu, agora muito nosso. não faço ideia de como ele sabia tudo, não sei como ele me enxergava pra além dos olhos, mas estava lá: em cima do m, pequenino, olhando, me lembrando. lembrando a primeira maconha escondida da minha mãe, ela que é sempre tão preocupada. o primeiro beijo no rapaz dos meus sonhos pra sempre. o último beijo no mesmo rapaz dos meus sonhos, pra sempre. ele olhava e eu sabia que ele sabia. sabíamos que era nosso. intimidade não tem pressa, não tem hora, e pela casa nosso silêncio até que 
–  paiiiiiiiiiii, acabeiiiiiiiiiii! 
antes de ir limpar a urgência daquele outro também tão meu, o grilo resolveu ir embora.
uma pena. 
nunca mais consegui dizer adeus. 
 

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