Clark Mangabeira
Carioca cuiabano, é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e professor adjunto de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Graduado em Direito, Letras e Ciências Sociais, é escritor de ficção, tendo publicado contos e poemas em diversas revistas literárias e acadêmicas, e escreve enredos das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.
OXALÁ
Nunca entendi por que chorava quando feliz. Havia uma ponta da felicidade que era triste, opaca. Pergunto-me se por aí vocês também sentem isso. Essa inconstância, a furtividade inevitável de algo que se quer eterno. Uma nesga fria cuja sombra lembrava-me, a todo instante, de que o que sinto quando feliz poderia ir embora. Cedo ou tarde, a felicidade se tornava um continuum entre o antes e a falta do futuro, e o que sobrava pelas beiradas era uma tautologia: restava o que restava. Mas não quero falar daqueles fins. Quero falar do começo. Afinal, para mim, aquela ponta era apenas dúvida de que talvez nada durasse, mas que durava enquanto durava, e tudo se resumia a ser o que já era, uma repetição de si, tautologicamente falando. Assim, o começo é o importante, não a repetição de momentos: é o começo do choro sem tristeza.
E a felicidade começou numa noite de final de ano, meados de dezembro. Ela vestia vermelho, suava com os pés batendo forte no chão. Entendam: eu não sei nada de samba ou carnaval. Sei fingir sambar com dedos esticados para o alto, os pés se alternando por entre corpos que sabem realmente se mexer. Brinco meio pateta e nem me importo. Ela não. Ela nasceu lá pelos berços do carnaval, carrega a força dos Orixás no corpo e me olha com o rufar dos tambores batendo dentro dela. Filha de Xangô e Oxum, vibra com água e rocha. Samba de um lado para o outro, ri lá de longe para mim e eu aqui, dedinhos para cima. É o que é.
Perdoem-me misturar presente com pretérito. A felicidade faz isso comigo. Misturo o ontem e o hoje porque ainda meio surdo pelo surdo da bateria. O passo dela batendo na minha cabeça constrói a imagem exata do momento do começo do novo: um girar de corpo e os olhos fechados. Ali começava o que eu sempre quis e tinha certeza: não estaria só. Odoyá, Iemanjá.
Felicidade é mesmo uma coisa estranha. Meus dedinhos continuam de pé. Ela se aproxima, se encosta em mim e me beija, discreta. Passa as mãos no meu suor, sinto o encaracolado dos cabelos. Desfaço-me na magia dos Orixás e sou dela. O começo. O tempo marcado na batida do samba. O perfeito do futuro e do pretérito. Duas línguas que se enroscam com a umidade do cangote da menina e a vida que se abre à frente, no quente da carne encoxada na minha. Vou entrando no ritmo dos seus quadris, os dedinhos se curvando e por um instante sinto o que ela sente. Coração com coração, pés enquadrados nos dela enquanto olho nos olhos. Cabem clichês neles: o mundo, o futuro, ela e eu. Meu amor, cabe tudo! Uma gota de suor que escorre pelo cantinho da boca, decidindo continuar descendo pelo resto do queixo. Sou eu que a salvei com um beijo e, nesse segundo, sambei.
Felicidade é isso: felicidade. Vê-la sambando, feliz. Bater de pés que moldam futuros. Nossos filhos sambando por aí. Começou. Durará enquanto durarem os carnavais porque é o que é. Levarei meu amor para uma Mãe de Santo rezar, por via das dúvidas. Sumiu a pontinha da tristeza. O Xangô dela é forte. Não sei nem mais o que é fim e a Mãe de Santo me dirá de quem sou filho, para me encher de força, para me proteger daqui pra frente. Fui ao banheiro. Ensaiei uns passos escondido. Carnaval sem as cinzas da quarta-feira. Havia algo de ordinário em tudo aquilo e nós começávamos. Saí do banheiro e ela me esperava.
Salve a grandeza de Oxalá.