Clark Mangabeira
Carioca cuiabano, é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e professor adjunto de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Graduado em Direito, Letras e Ciências Sociais, é escritor de ficção, tendo publicado contos e poemas em diversas revistas literárias e acadêmicas, e escreve enredos das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.
SANTA MARIA DAS BONECAS RUSSAS
Quando me olharam, me criaram. Eu fui colocado dentro de uma morte e, essa, em uma vida. Encaixaram todo o conjunto em um corpo; esse, em uma família. A família em ideais que, dentro de um mundo qualquer, amarraram-se bem presos. Em vão, lá no interior, eu me debatia, procurando entender o que quer que fosse que eu achava que conseguiria saber. Antes de sequer ter consciência de mim ou do existir, já estava delimitado dentro do tudo e do todo, abraçado ao que pensaram ser mais importante. Era tudo menos eu quem importava.
Foi aí que me olhei no espelho dos meus olhos, reluzindo no escuro isolado de dias escuros. Abri-os. Rasguei-os com vontade, jogando-os no chão. De dentro, tirei minha emoção, e, dela, a razão. Na razão estava encaixada uma nesga fraca da minha alma, de brilho leve e amargura grossa. Da alma, tirei os demônios e, deles, saíram os anjos e minha Santa: eram tudo que eu achava que queria ser, que deveria ser. Lacerei-os e, dos intestinos e útero Dela, sem que eu achasse que havia outra coisa, caiu a sombra do que era eu mesmo, um fiapo de qualquer pedaço de mim por inteiro que marejou meus olhos, rasgados lá pelo chão.
Parei por um momento. Precisava limpar o salgado da vista para ver. E então eu vi: o fiapo. Também o senti por espasmos intensos, ligado a tudo que tirei e que colocaram, demônios, anjos e Santa. Era aquilo que eu era. O fiapo de mim, eu todo no fiapo; um fiapo que se fazia apenas como Verbo, num conceito que nem sei bem se entendia direito, que nem sei se talvez conseguirei entender um dia, mas que sentia que era. Era algo. Eu era algo. O mosaico puído, a linha torta e tênue que estava lá dentro, o fio que saiu por último. Ao dar por mim, brincando com ele, percebi a amplitude do conceito ali amarrado na pequenez do mundo fechado em si, o seu quase significado ali escrito. O fiapo eram as barras da prisão, as de dentro e as de fora. Nada mais havia. Apenas isso e, nisso, eu.