Carvalho Júnior
É o nome literário de Francisco de Assis Carvalho da Silva Junior, Caxias/MA, 1985. Professor, ativista cultural, gestor público e poeta brasileiro. Vencedor do Troféu Nauro Machado no I Festival Maranhense de Conto e Poesia (Universidade Estadual do Maranhão, 2015). Publicou os livros de poemas Mulheres de Carvalho (Café & Lápis, São Luís, 2011), A Rua do Sol e da Lua (Scortecci, São Paulo, 2013), Dança dos dísticos (Editora Patuá, São Paulo, 2014), No alto da ladeira de pedra (Editora Patuá, São Paulo, 2017) e O homem-tijubina & outras cipoadas entre as folhagens da malícia (Editora Patuá, São Paulo, 2019). Edita a página de poesia Quatetê.
O HOMEM-TIJUBINA
ho.mem: s. m. 1. BIOL. Mamífero da ordem dos primatas, do gênero Homo, da espécie Homo sapiens, de posição ereta e mãos preênseis, com atividade cerebral inteligente, e programado para produzir linguagem articulada. [http:// michaelis.uol.com.br]
ti.ju.bi.na: s. f. || (Bras.) nome vulgar de uma pequena lagartixa. || (Ceará) (pop.) O mesmo que lambedeira. [http://www. aulete.com.br/tijubina]; etimologia: tupi: teiu-ombý [http:// michaelis.uol.com.br].
I.
o homem-tijubina tem um paladar exigente. não digere o ovo do óbvio. somente silêncios de pássaros lhe passam pelos gorgomilos. quando o indagam a respeito desta passagem, diz que o outro lado da vida está no verso. não tem idade, apenas caminha. às vezes para frente quase sempre para o fundo do poço que guarda as lágrimas dos seus ancestrais. é um composto de cortes de unhas-de-gato e incoerências.
II.
o homem-tijubina vive, se dobra, (des)dobra e recorta como um zine. camelô do calçadão da afonso cunha, pede esmolas como um poeta, é este azulejo quebrado nas tuas mãos. usa colar de hippie, pulseira de sementes antiquebranto, antiódio e antiamor ao mesmo passo e no mesmo cortar de pulso. é poeira invisível nos escombros do cassino caxiense, fôlego e asfixia nos vivemorres do rio itapecuru. na esperança de novos dilúvios, ele recita cecília: a chuva é a música de um poema de verlaine.
III.
para o homem-tijubina a infância é como uma ferida sem costura. diz que carrega suas corcundas hereditárias pela força das ladeiras de pedras brancas em que um dia correu com os bolsos cheios de pitombas, penas de passarinhos e sonhos acesos dentro de lampiões improvisados. quando tomado de ira do mundo, enfia o dedo no cu das não levezas do cotidiano e brada contra a apatia dos fantasmas bípedes.
IV.
as pernas do homem-tijubina têm o fracasso como farinha, como a massa de araruta que o alimenta no íntimo. − sem uma pedra na testa, quem pode fazer um bom festejo? ri das próprias perturbações com a dentada suja e incompleta sem muito se preocupar em entender os tipos híbridos que lhe compõem a natureza.
V.
o homem-tijubina descansa as dores no silêncio da caieira quando opera o carvão guardador dos suspiros do babaçu que desintegra os rancores no lábio do machado. como um índio, busca remédio nas ervas naturais do seu chão e na fé que se agarra como um ímã na moeda. balança a cabaça da paciência e se benze/cura pelo rabo da mucura, pelos tutanos das lendas que o ninam com uma voz de mãe.
VI.
rá. o homem-tijubina é um bicho-papão. rá. o homem-tijubina parece a velha iaiá. rá. o homem-tijubina não sabe assustar. sobrevive de soluços e atravessamentos debaixo da ponte caída que dá acesso a lugar nenhum. um gole humilhado de cachaça cuspida foi o que de melhor lhe aconteceu na última noite. para quem tem quase nada para viver um pedaço sovinado de qualquer morte já é um favor.
VII.
o homem-tijubina não confia na polícia. nos ladrões de meio de rua talvez um pouco de vez em quando com os olhos bem vivos. sobre aqueles moços(as) dos cartazes e santinhos diz que são moscas varejeiras prestadoras de culto às grandes merdas que fabricam nos gabinetes. tossir é tudo o que ainda pode este velho metade humano, metade lagarto colorido de meninice. aquela ternura escondida dentro do baú do arco-íris talvez até o melhore, mas a tosse do homem- tijubina de tão braba não cura nem com leite de uma jumenta dourada.
VIII.
o homem-tijubina é um poema desprezado, por todas as almas viventes e vegetativas, resistente às chuvas e às ferrugens que lhe explodem a pele. um dia ele nasce alguma coisa diferente e deverá outra vez aprender a viver com a indiferença dos homens, dos répteis e de todas as (sub) espécies por um ou vários deuses, darwins ou big-bangs inventados.
IX.
não pense no fim, pelo amor da essência divina dos jenipapos, palmitos e sapucaias. o homem-tijubina não morre nem com a faca treinada da dona lourdes fateira que talha, sem perdão, até mesmo os peixes nas paredes que o delírio humano-tijubínico sopra. sobrevive ao tempo como o grito de tiêta, como os desenhos e estátuas de areia de andré valente. enquanto mãe bida movimenta o quibano ao som dos capotes e bodes & outros cantores do sertão artesanal das malícias e gameleiras, o homem-tijubina renasce, reconstrói-se e abraça as suas raízes mais uma vez montado em um cavalo-de-palha.
X.
quando o homem-tijubina estende as chagas sobre a música das folhas, preenche-se de fôlego para seguir com o cabresto aramado da sandália bailarina de cipó, improvisando [à sombra das quatetês sibilinas] o escorpião de higuita. o sol lhe doura a tatuagem leite castanha de caju com o nome de uma lepidóptera mítica. um talo de coco numa mão, uma xícara de café de tucum na outra e cismas incontáveis sob o cofo sarapintado da pele.
XI.
de peito lagartístico e calangnóstico, vagamundeia o homem- tijubina com uma reza inaudível no meio da roça. avança sobre as bitolas do chão regado de urucum e comemora a luz que lhe atinge de prazer o seio mais delicado dos abrigos de sua fauna interior. o chicote de um sorriso cintila e brinca com os dados de mallarmé nos aclives/declives do mundo novo da sua teia enrodilhada de pedras.