Paulo Sesar Pimentel
Natural de Mato Grosso do Sul, mas residente em Mato Grosso há mais de 20 anos. Graduado em Letras, Mestre em Estudos de Linguagem e Doutor em Psicologia, é professor do IFMT Campus Cuiabá – Bela Vista. Publicou as coletâneas de contos “O cão sem penas” (2014), “Diário de Uma Quase” (2010), “Café com Formigas” (2005) e “Ângulo Bi” (2002 - com outros autores mato-grossenses).
CORREIÇÃO
“Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.”
(I Coríntios 13. 11,12)
O que você faria se não tivesse medo?
Estamos sentados numa sala de espera. Bem cuidada e bonita. Tenho 19 anos. Não tenho mais. Mas me vejo tendo 19 anos. Revivo. Economizei por semanas e vim. Todos os meus amigos falam daqui. Todos já tiveram seus momentos aqui. Faltava só eu e o Pereba.
Pereba é negro, reluz quando a claridade reflete em sua pele. É bonito, a sua maneira. Tem jeito fugidio e arisco. Magro, definido e bruto. Raramente fala. Acho que só veio mesmo porque todo mundo veio. E porque eu estaria aqui. Fiz o mesmo por ele. Não sei como conseguiu dinheiro. É tão pobre quanto eu. E esta tão nervoso quanto, imagino pelo balançar constante dos joelhos. É bruto, mas tem medo. Faz uns dez minutos que estamos esperando. Acho que ele vai primeiro, eu vou depois. Ou não, não sei. Só quero ir porque todo mundo foi. Só́ quero fazer, pois se não fizer, continuo sendo gozado nas rodas. Pereba é igual.
Penso em quando eu crescer mais. Esperar é um encontro consigo mesmo. Não converso com Pereba, ao meu lado. Não olho para ele e ele respeita isso. Não olha para mim. Os dois sabemos a razão de estarmos aqui.
Ela deve ter uns trinta anos. Mudou-se pro bairro sob a proteção de alguém. Alguém que manda. Ninguém se mete com ela, só se pagar. E ela cobra caro. Diz que já foi pra tudo quanto é lugar. Diz que já conheceu gente que só se vê pela TV. Eu acredito, todos acreditamos e por isso juntamos dinheiro. Pra vinte minutos. É o que podemos pagar.
Estou nervoso. Não é minha primeira vez. Teve uma negrinha com quem fiquei em pé́, encostado numa cerca viva, com uns quatorze anos. Foi a primeira. Num me pediu nada, não me deu nada. Só levou minha pureza. A dela, nunca soube onde ficou. Outras vieram. Elas querem proteção. Elas olham pra mim, grande, ombros largos, boca grossa, olhos árabes e tristes, cobertos por sobrancelhas espessas e acham que serei um dos chefes. Geralmente, quando descobrem que estudo à noite, carrego caixas durante o dia e vivo num barracão miserável, sonhando em fazer uma faculdade e sair daqui, fogem de mim. Procuram outro. Pereba até convence e as tem. Perco, mas o que me interessa delas eu já peguei.
Hoje vou pagar. Vou pagar pra ter algo que sempre tive de graça. Por tempo determinado. Até elas saberem de meus sonhos burgueses. Elas tem sonhos marginais. Meus amigos riem de mim também. Eu tenho dezenove anos e visto roupas velhas, tênis surrado. Eles, com poucas entregas já tem uma calça bacana, dois tênis, camiseta transada, boné́. Às vezes me emprestam. Às vezes só riem de mim e falam que canudo num enche barriga, nem cobre os ossos. Eles estão na moda. Tenho dezenove anos, mas se eu me adiantar, verei daqui a dois, o Pereba morto por dívida, este mesmo que esta ao meu lado. Verei o Joãozin preso, assassinado na cadeia, Rico paralítico, bala de policial num perdoa, Neguinho sumido, desde o dia do ônibus. Verei a mim, morando no centro, trabalhando e negando origens, sonhando em comprar um carro com o salário de professor do estado. Farei concurso público com vinte e três. Em tão pouco tempo, tudo vai mudar. Mas agora, eu estou aqui, sentado com Pereba, meu amigo ainda vivo, esperando a moça chamar. Disseram que ela geme em língua estrangeira, a gosto do freguês, que ela foi bailarina e mexe como se não tivesse ossos, que vale cada centavo caro cobrado. Pereba se levanta e vai. Eu fico. Mais vinte minutos de espera. Meus vinte anos me esperando. Tenho dezenove e ainda creio no mundo. Apesar de tudo ainda creio no mundo. Esperar não me é, ainda, um problema. Mas penso no passado. Em vinte minutos, relembro o meu começo de tudo.
Não sei por que algumas lembranças resistem. Não há nada que as apague e, mesmo só lembranças, postas sobre um cômoda, viradas para a parede, numa gaveta, encobertas por outras e outras, às vezes elas emergem. Estranho esse pensamento. Brotou espontâneo. As lembranças, às vezes, tem vida própria.
Com três anos, vivi minha primeira espera. Morávamos em uma casa de bairro, outro bairro, bem afastada de qualquer civilização. Brincávamos no barro batido ou na poeira suspensa e rezávamos, eu ainda com três anos, para que a prefeitura nunca passasse por ali, concretando nossos sonhos de desbravar uma terra solta e movediça. Ela nunca passou, mas os sonhos se perderem no barro e na terra solta.
A casa de madeira, suspensa em vigas quase podres, tombava pro lado esquerdo, mostrando o quão esquecidos nós éramos. Eu não conhecia livros e as únicas poesias de minha vida eram as paródias maldosas dos moleques da rua, que eu não entendia, e as canções que mamãe sussurrava, em dias bem esparsos, não pra mim, mas para seu sonho, uma menina recém-nascida que dormia ao meu lado. Eu esperava a minha vez.
Eu fui a primeira grande decepção de mamãe. Ela queria ninar um espelho, uma menina, e vim eu, moleque robusto e chorão, vermelho e feio, minar seus sonhos maternais, lembrança de todos os homens que passaram e passariam por ela. Ela chorou por três anos, queimando velas e esperando seu ventre encher. Tantos homens passaram, tanto sua cama esquentou e, até minha irmã brotar, pra ouvir cantigas suaves de mamãe, eu fui ninado por gritos e gemidos, palavras torpes e poesia vulgar de todos os machos do bairro.
Um dia, ela sorriu e, de seu sorriso, brotaram formas arredondadas no corpo, brotaram lastros de felicidade em seu rosto e, rotunda, ela me acariciava, menino de três anos travesso, projetando novamente seus sonhos no mundo que nela se formava. Alguém do alto ouviu e, nove meses de- pois do último gemido na cama ao lado, brotou minha irmã, pequena e amada, espelho de uma grande mãe, frustrada e flácida. Eu só espiei. Traquinei, esperei e vivi a desgraça de quem sente o favo e não chupa o mel.
Com um mês e meio de nascida, nossa casa foi invadida. Formigas pretas e pequenas, em número suficiente para serem grandes, tomaram nossa casa numa correição. O mato ao lado colaborava com toda sorte de pestes estranhas, inumanas e desconhecidas. As formigas tomaram tudo enquanto dormí- amos e só as percebemos quando elas roeram minha perna, envolta esta numa camada daquelas, expulsas então por um grito que nem sei exatamente como brotou.
Mamãe pulou da cama, pegou-me no colchão, chacoalhou-me e, ao longo de toda a vida, esse foi o único momento, em movimentos bruscos destinados a mim, que soube efetivamente o que era o amor, ou somente a preocupação que poderia evoluir para o amor. Terminou logo, sem tempo para evolução. Ela lembrou-se de minha irmã e, quando se virou para arrebatá-la do ninho, descobriu uma massa negra e pulsante, no lugar de uma criança sadia e vivaz. Não houve tempo e nem todas as lágrimas derramadas, muitas, foram suficientes para afastar a correição, que roeu até os ossos, deixando branca e casta uma criança sobre a cama.
O movimento das formigas foi ligeiro. Não lembro quanto durou, mas rapidamente, um rio negro avançou pelas paredes, abandonando a cama e deixando um rastro de limpeza pela casa, deixando branca a cama, com ossos reluzentes, branca a cozinha, sem pingo de gordura saturada em canto algum. Deixou também mamãe, que se pudesse, serviria suas carnes fartas como castigo às formigas. Ela até tentou, mas saciada, a correição foi embora. Durou horas seu choro fininho, repleto de olhares enigmáticos para mim.
Quando amanheceu, vieram os vizinhos, sem grandes perdas, movidos por uma calmaria que talvez os tenha as- sustado. Mamãe geralmente gritava demais. Desse dia em diante, o silêncio brotou forte de seus lábios, cada vez mais apertados e seu corpo flácido e gordo, simplesmente despencou. A gravidade finalmente a atingira e ela se suspendeu no ar por apenas mais três ou quatro meses. Perto dos quatro anos, estava eu sozinho no mundo.
Cresci sem sortes nem azares. A rua é o passatempo predileto do vagabundo. Naquela época, sem rumo, me arrastava por todos os cantos, dormindo por favores, esquecido por qualquer ordem social. Cresci como crescem os lírios do campo, mas sem a vestimenta bela, nem o farfalhar suave que indica a predileção divina. Cresci me esgueirando pela poeira, galgando ruas e, pela esperteza, chegando ao concreto das grandes cidades.
De escola em escola, de bairro a bairro, aprendi a ler. Encantei-me por viver vidas que nunca foram ou serão minhas. Aprendi a rezar e vi que isso era inútil, como inútil é tudo o que há de escrito, decorado e repetido no mundo. Aprendi que a desgraça é uma faca afiada em minhas mãos. Nunca a senti porque ela está virada para o mundo. Poderia virá-la para mim, mas vale a pena se ferir? Aprendi a contar a verdade e essa foi a grande forma de mentir.
Vinte minutos, que antecedem os vinte anos. Eu ainda tenho sonhos. Espero e se pago pela primeira vez por gemidos fingidos, quero viver esse momento, quero olhar para a cara dessa mulher e imaginar que ela me deseja, mesmo sabendo que sobre a mesa repousam minhas economias, que antes de mim, tantas águas rolaram, tantos homens a amaram, talvez bem mais, talvez melhores do que eu. Mas quero crer que ao entrar por aquela porta, fechada ainda pra mim, eu serei mais homem que sempre fui. Lembro-me novamente de minha irmã. Poderia ser ela? Minha mãe, abraçando o mundo e abrindo pernas.
Esperando um sonho chegar. Lembro do dinheiro contado no meu bolso, conferido várias vezes, amassado e enrolado, bem no fundo, para não perder. Tanto dinheiro pra mim e ela, parada de pernas abertas, leva tudo. Ela parada de pernas abertas, com sons que nem humanos são, ou com sons que se originam em outros mundos, em outros lugares, gemidos altos, fica por isso com tudo. Minha irmã. Minha mãe, minha puta. Por apenas alguns minutos. Vejo-me em pé. Pereba ainda não saiu. Negrinho demorado. Sua demora é minha certeza. Como uma formiga, solitária, fugindo do bando, nem me vejo passar pela porta. Abandono a casa. O dinheiro economizado esquenta meu bolso. É meu. Não dela. Também não comprarei flores para pôr no túmulo de mamãe ou de minha irmã.
É meu, não delas.
Saio à rua e vejo o dia.
Pego-me olhando o céu. Um azul profundo. Penso na terra e em quem olha pra mim de cima. A terra azul. Tão confuso esse jogo, azul. Olho para a frente e imagino o círculo que compõe o horizonte, escurecendo. Final de tarde, um azul desbotado e uma luz que começa a se apagar. Há pensamentos que não deveriam emergir. Mas tenho coragem, isso me permite fugir do bando. Pereba ainda deve estar lá e depois serei só eu. Nunca fui. Uma formiga desgarrada que desde a primeira lembrança se alimenta de mais lembrança. Corro. Em direção ao fim da rua. Terra batida. Fugir é uma forma de ter coragem, fugir é uma forma de não ter medo. Eu sei o que custa.
Tudo é pago no mundo, descubro. E tudo deve ser cobrado. Entendo a lógica do dinheiro e ele não compra lembranças. Mas ele é meu, elas são minhas. Minha puta, minha irmã e minha mãe, meu dinheiro no bolso. Pereba lá.
Continuo correndo.
Agora sou homem?