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Dante Gatto
Natural de São Paulo-SP, professor aposentado da UFMT e da UNEMAT, colaborador do Programa de Pós-graduação de Estudos Literários. Escreveu e acompanhou a montagem de seis peças de teatro: Os vencidos (1985); A noite dentro da noite (1986); A Criação literária (1988); Amar, verbo intransitivo - adaptação (1995); Retorno ao futuro: a semana de 22 (1996) e A voz do povo: 500 anos de história (2000). A peça A noite dentro da noite, em 1990, recebeu o Prêmio “Textos inéditos do interior. Ano 90” do Projeto “Oswald de Andrade de Dramaturgia”, promovido pela Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo. Publicou três livros de poemas: Poesias (1980); Unimultiplicidade poética (2005) e A Ferida e outros poemas (2015). Publicou vários prefácios e poemas premiados em diversos concursos literários.

MATEMÁTICA

Parecia-lhe inacessível o universo dos números. Arrastara os anos pré-universitários com um desempenho bem abaixo do que apresentava em outras áreas. Aquilo incomodava sua autoestima muito mais do que seria aceitável a uma pessoa, digamos assim, psicologicamente saudável. Tinha clareza que para o resto da vida poderia sobreviver academicamente sem a matemática a ferir seu orgulho profissional, mas não se dava por vencida.


Foi numa tarde de sexta-feira em que quase dormia sobre um manual pré-vestibular, esfacelando-se em equações que pareciam ter infinitas incógnitas, na biblioteca pública, escondida atrás de uma prateleira, anexa ao tampão da mesa, que ouviu aquele poema. Bem, temos de voltar um pouco nos acontecimentos. 


O fato é que a jovem vestibulanda não só conhecia o referido poema, como a voz por detrás dele. Fora seduzida em circunstância similar e se via solapada naquele momento pela inapropriada e indigesta repetição em que não ela era a musa do eu-lírico. Num vertiginoso relance adivinhou tudo. A cabeça caiu sobre o livro e sonhou desaparecer no ladrilho branco da sala ou ainda, melhor, nos números. Lá estava a equação sob seus olhos molhados e a incógnita ela matou num rápido desfecho. Humilhada, não quis saber quem era a outra; confortável, na medida do possível, em seu improvisado esconderijo.


 Caiu um silêncio pesado no recinto. Permaneceu imóvel, examinando as equações e resolveu mais algumas com inédita facilidade. O choque, afinal, teve efeito extraordinário.


Teve de ser convidada para se retirar por conta do fechamento do local. Caminhou para casa com uma leveza estranha, porque sentia os números pendurados nela. O namorado poeta e traidor a esperava na calçada. Ela reclamou cansaço. Fria ou indiferente? Precisava estudar e foi exatamente o que fez para que os números se desgrudassem dela. 


Foram mais três encontros do casal, ambos forçados por ele, para que percebesse que a paixão dela havia cedido a outros interesses. Quis explicações, escreveu outros poemas, exagerou na bebida fazendo alardes públicos, levantou impropério aos deuses, mas desistiu, por fim, quando percebeu que era fria e matematicamente ignorado.


Ela passou no exame vestibular muito bem classificada, mas o curioso é que fez uma opção inesperada até para si mesma. Desistira das humanas para abraçar as exatas. Fora a traição do poema, combinada ao acolhimento e assédio dos números? Ria por dentro da situação sem nunca ter tido coragem de confessar a ninguém a manobra do destino. Mas a fatalidade não parou por aí.


O ressentimento dela pelas palavras foi cedendo ao mesmo tempo em que fincara pé na matemática. Fizera-se professora: mestrado, doutorado, conferências, prestígio. Era boa, também, na atividade de ensinar, apesar de um tanto quanto rigorosa e até ríspida. Foi aprendendo, com a prática, que nem sempre a pressão psicológica e moral era boa didática. 


Já estabelecida profissionalmente, cedeu enfim à paixão de um conhecido dos tempos de colégio, apesar da amizade dele com o poeta que distribuía os mesmos versos a distintas namoradas. A situação se acomodou mesmo, porque não havia mais proximidade entre eles.


Casaram-se. Sem que ela nunca tivesse dado por si, entendeu com o matrimônio o quanto foi longa e dolorosa a superação da primeira paixão frustrada, mas finalmente estava morta e sepultada, juntamente com o infame traidor. 


Foi durante uma festa junina, entre sorrisos e rojões, em que as crianças brincavam na rua fechada para o evento que a conversa do casal chegou à biblioteca pública, naqueles anos não muito dourados do colégio, em que ela sofria com os números. Ouviu então, atônita, do marido que ele pedira conselho ao namorado dela, daquela época, aquele poeta, o método de sedução que a enfeitiçara e o vate declamou-lhe, na biblioteca vazia, um poema que ele ainda lembrava estrofes e versos. 


Ela também. 

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