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Clark Mangabeira
Carioca cuiabano, é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e professor adjunto de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Graduado em Direito, Letras e Ciências Sociais, é escritor de ficção, tendo publicado contos e poemas em diversas revistas literárias e acadêmicas, e escreve enredos das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. 

COMIDA

João ficava quietinho olhando o entra e sai enquanto a mãe trabalhava. Ficava ali naquele canto, invisível, vendo dia após dia os pedidos. Sua mãe, atenta ao trabalho, olhava o filho pelo canto do olho. O primeiro cliente, João sabia, ia sempre pela manhã atrás do café. O freguês pedia croissants, pão sovado, queijos variados, focaccia, suco de mirtilo, brioche e chineque. João via aquilo e sabia que tudo era gostoso, não importavam os nomes difíceis. Lambia os dedos, porém não fazia nada. Fica quieto, João, que tô trabalhando, tá? O menino era obediente e a mãe, firme. O senhor que vinha no meio da manhã pedia ainda mais: omeletes, ovos Benedict (e outros poché), quiche de alho-poró, queijo Brie com geleia de damasco, waffles, croque monsieur. A barriga do menino roncava e ele, quietinho. João, fica aqui que vou ali em cima atender esse moço, tá? Não sai daqui, hein? E lá ficava João, quieto, a manhã toda. A mãe demorava só o tempo dos prazeres do seu cliente, que tinha apenas as manhãs de terça para enganar a esposa. Ela descia se ajeitando e angustiada por encontrar João ainda sentadinho no canto da rua, lado de fora da vitrine da padaria. Coisas do Rio de Janeiro, o motel discreto em cima da padaria chique lá pelas bandas do Centro. A mãe sorria aliviada toda vez que seus olhos achavam João, mesmo que por pouco tempo. Aqui, filho, vou ter que falar com esse outro moço aqui, mas vai lá do outro lado da rua e compra um lanche, tá? João pegava as moedas e corria pro boteco da frente. Era a hora do almoço. Pedia o que dava e voltava feliz pro seu canto com um pão com mortadela. Mas lá dentro e lá em cima? Ah, delícias sendo consumidas de todas as formas! Ainda sem perceber, entre uma mordida e outra, na marra desgraçada da vida e no injusto duro do meio fio, João começava a se inconformar com os pedidos dos fregueses e com a realidade de ser um daqueles meninos tristes que se satisfazem com quase nada.

© 2019 - Revista Literária Pixé.

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